Giorgio Tourn *
No dia 27
de maio de 1564, morria, em Genebra, João Calvino,
aos 55 anos, idade para nós hoje de plena maturidade, à época nos limites da
existência. Ele se apagava serenamente, depois de ter participado, já muito
provado, do término do encontro semanal com os pastores da cidade, depois de
almoçar com eles.
A notícia se espalhou na cidade, e muitos forasteiros, que
vieram para encontrá-lo, gostariam de ter podido vê-lo, atitude compreensível
em uma sociedade que não conhecia as fotografias e os tablets, mas foi
sepultado às 16h, de acordo com a sua vontade, no cemitério de Plainpalais, na vala comum.
Hoje, no jardim do parque municipal, encontra-se uma pequena
laje de pedra de poucos centímetros, com a gravação “J. C.”, as iniciais do seu
nome, Jean Cauvin,
e é preciso saber onde busca essa pedra. Talvez, o que inspirou essa escolha
foi a ideia, para ele quase obsessiva, de que a criatura humana é,
naturalmente, idólatra, sempre busca algo para adorar no lugar de Deus, e os
mortos sempre foram objeto de particular devoção.
Pensando na Praça Vermelha e
nas grutas vaticanas, é preciso se perguntar se a sua dúvida não tinha algum
fundamento. Sem túmulo, ao invés, não se poderia idolatrá-lo, e, sobre esse
autoapagamento da própria pessoa, se poderiam fazer muitas reflexões também do
ponto de vista evangélico.
Diante dessa pedra na grama de um jardim público, onde as
crianças brincam e os aposentados leem o jornal, enquanto ao fundo flui o
tráfego da cidade, o pensamento se volta imediatamente para os túmulos dos dois
personagens que foram, na cristandade do século XVI, os seus interlocutores: Lutero
e Inácio.
O primeiro está sepultado na igreja de Wittenberg, aos pés do púlpito onde ele pregara durante
toda a sua vida; o segundo, na igreja do Gesú, em Roma, o centro espiritual da Companhia de Jesus; uma lápide, no primeiro caso; um
santuário em um grandioso altar de construção barroca, no segundo. Ambos em
lugar eclesiástico, onde se reúne a comunidade dos fiéis, duas igrejas em
evidente contraposição, a da Palavra (a cujo serviço Lutero viveu), a do altar, do poder sacramental (à qual Inácio dedicou a vida).
O nosso irmão Calvino não só
não tem túmulo, mas também está fora do templo, está entre os mortos da cidade;
na catedral, resta apenas a sua Bíblia. Evidentemente, trata-se de outro modo
de ver tanto a Igreja, quanto a cidade, quanto a sua relação. A igreja está no
templo, em torno da Palavra, não na cidade; na cidade, está o crente vivo e
morto.
Um segundo pensamento surge em mim, no entanto, lembrando aquela
sua lápide anônima (se você não sabe que "J. C." são as suas
iniciais, você pode pensar em qualquer coisa, de fato): esse despojamento tão
radical de si mesmo não está no limite do desumano? Dar glória ao Senhor
implica o anulamento de si mesmo e da própria humanidade? Não leva a uma
religião sem coração, sem sentimento, rigorosa, mas esquemática, fria?
Os nossos concidadãos pensam isso, porque o italiano é acima de
tudo um latino, não só na arte da retórica, no jogo das imagens, na
criatividade, na concretude (como demonstraram as últimas eleições), mas latino
no paganismo da humanitas.
Primeiro, há o homem, depois Deus.
O desafio da nossa pregação talvez esteja nisto: ser filhos da humanita latina, isto é, não
fazer da fé uma ideologia, mas sim a premissa de uma identidade; mas, ao mesmo
tempo, não ser escravos dela, ser libertados do paganismo da humanitas para realizar o
humanismo dos discípulos de Cristo. Aquele
túmulo não é desumano, mas é a plena realização da humanidade.
Não
é por acaso que, nessa fronteira de um humanismo da fé e não da
"carne" (para usar a expressão de Paulo),
isto é, da natureza, jogou-se toda a questão valdense ao longo do séculos: a
pobreza dos "barba"
[expressão italiana para "pastor valdense"] contraposta à dos filhos
de Francisco, a pregação dos ministros
à dos filhos de Inácio. Leigos os primeiros,
clérigos os segundos, usando linguagens muito semelhantes, mas dizendo coisas
opostas.
___________________
Texto do pastor e teólogo valdense Giorgio Tourn, em artigo publicado na revista Riforma, das Igreja evangélicas batista, metodista e
valdense italianas (04/072014). Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/533035-calvino-uma-lapide-sem-tumulo-artigo-de-giorgio-tourn>. Acesso em 14 de nov. 2018.
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