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✢ CALVINO E O POLÊMICO CASO SERVETO (1553)
Armando Araújo Silvestre *
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Após toda a difamação iniciada por Bolsec, ainda a acusação que persiste é a de que Calvino pessoalmente matou Serveto. Isso contraria a lógica dos fatos e da própria estrutura de Genebra. No máximo, pode-se atribuir a Calvino a concordância com a condenação deste herege.
Miguel Serveto (1511-1553), ou Michael Servetus em latim, ou aportuguesando-se para Miguel Serveto, já havia sido condenado pela Igreja Católica.[1] Fugiu da primeira condenação, mas acabou descoberto em Genebra. Não se intimidou, mas continuou desafiando a Igreja, primeiro a católica, agora a protestante. No século 16, não poderia esperar-se outro final: foi condenado à morte. Médico, teólogo, filósofo, geógrafo, astrônomo e astrólogo, este espanhol nascido em Vilanova de Sigena-Huesca, no norte da Espanha, defendia ideias teológicas que contrariavam tanto as doutrinas católicas quanto as calvinistas. Acusado de heresia, Serveto já havia sido preso e julgado na França. Conseguiu evadir-se da prisão e quando se dirigia para a Itália, através da Suíça, foi novamente preso em Genebra, julgado e condenado a morrer na fogueira, por decisão do Pequeno Conselho, a pedido do tribunal eclesiástico ou Consistório.
Quando Serveto residiu na região do Dauphiné francês, na cidade de Vienne,[2] trocou correspondências com Calvino sobre assuntos de cunho teológico. Serveto não aceitava as doutrinas do batismo infantil, da cristologia segundo o Concílio da Calcedônia, nem mesmo a doutrina da trindade, segundo o Concílio de Nicéia. Calvino e Serveto romperam esse relacionamento epistolar em 1547.
O tribunal de Vienne condenou Serveto no dia 17 de junho de 1553, logo após ele ter publicado “Christianismi restitutio”. Serveto conseguiu fugir da prisão. Restou aos que o condenaram queimar seus livros e também queimá-lo em efígie, ou seja, queimar um boneco que representava o condenado. Como se estivesse executando o próprio herege, ainda que simbolicamente. Serveto já estava morto para a igreja católica. Morto na fogueira dos hereges. Em outro país não seria feita a mesma coisa? Obviamente, sim.
Na rota de fuga, passando por Genebra, acabou preso. Houve um processo contra ele, baseado em 38 artigos, condenando-o por heresia. Era o mês de agosto de 1553. Era uma época sombria e em Genebra havia um grupo de opositores a Calvino que se aproveitaram da situação para criar polêmica. Entre eles estava o genebrino Philibert Berthelier, do partido político dos “articulantes”, anticalvinista, e ele decidiu defender Serveto e confrontar Calvino. Calvino compareceu diante do Pequeno Conselho e se declarou contra Serveto. Porém, aqui entra um comentário que desmente a sua crueldade, sem desculpá-lo de sua intolerância. Calvino pedira a Farel, por meio de carta, “Espero que Serveto seja condenado à morte, mas desejo que seja poupado dos horrores da fogueira.”[3]
O Pequeno Conselho decidiu consultar as igrejas das cidades vizinhas, Berna, Zurique e Schaffhouse. Também consultou a cidade de Viena, pedindo cópias da condenação que infringiram a Serveto. Vienne pediu a extradição do prisioneiro, para ser sentenciado na fogueira daquela cidade francesa. Serveto não tinha para onde correr, ou a fogueira vienense ou a genebrina. A morte era iminente, inescapável.
O Pequeno Conselho de Genebra organizou uma discussão entre Calvino e Serveto para demonstrar a Serveto quais eram os seus erros. Nesse período, também Berthelier compareceu no Pequeno Conselho pedindo o cancelamento de sua própria excomunhão e afrontou o Consistório que lhe infringira tal pena.
No dia primeiro de setembro de 1553, Berthelier conseguiu sua admissão à eucaristia já para o domingo seguinte, dia três de setembro. Foi nesse dia que Calvino protestou e se recusou a servir a santa ceia ao excomungado. Até mesmo pregou um sermão de despedida, o calor da quebra de braços entre Calvino e esses libertinos, do partido dos articulans, os enfants de Genève.
A disputa se acirrou e as autoridades de Calvino e do Consistório foram desafiadas. Juntamente com os pastores de Genebra, no dia sete de setembro, Calvino e os demais protestaram diante do Pequeno Conselho solicitando a independência do poder eclesiástico. Repetiram o protesto no dia 15. No dia 18 de setembro, o Pequeno Conselho decidiu “ater-se aos editos como era o costume anterior.”[4]
Serveto, por sua vez, não se aquietava e ainda mandou ao Pequeno Conselho um pedido para que Calvino fosse preso. Apoiava-se na lei de talião, e desejava retaliar aquele que o acusara falsamente, acusando-o de heresia e exigindo a condenação dele. Foragido de Vienne, preso em Genebra, condenado à morte, deu essa última cartada, contando com a divisão da cidade e com o apoio daqueles que confrontavam Calvino. Serveto colocou em xeque o Pequeno Conselho de Genebra: a morte dele ou minha.
A resposta das outras cidades suíças chegou a Genebra em 18 de outubro de 1553. Todas condenavam Serveto e sua heresia. Apoiavam Calvino e os demais pastores de Genebra. A morte de Calvino ou a de Serveto?
No dia 26 de setembro, o Pequeno Conselho de Genebra decretou a condenação de Serveto à morte na fogueira, já para o dia seguinte. Novamente Calvino escreveu a Farel, explicando-se: “Nós nos temos esforçado para mudar o tipo de morte. Foi em vão. Eu lhe direi de viva voz porque nada conseguimos.”[5]
A sentença foi dada pelo Pequeno Conselho de Genebra, que condenou e executou Serveto, dando ganho de causa ao Consistório. Para fazê-lo, o Pequeno Conselho pediu a opinião da liderança eclesiástica das demais cidades suíças e até da cidade católica de Vienne. Calvino e os demais líderes religiosos do Consistório foram confrontados pelo genebrino Berthelier e demais opositores. Calvino foi acusado por Serveto que queria sua condenação à morte. Serveto perdeu a batalha. Morte? Sim, a dele e não de Calvino, como ele mesmo sentenciara.
Assim, o Pequeno Conselho resolveu o que somente a ele cabia fazer: executar a justiça própria da época e daquela cidade – executou Serveto. O Pequeno Conselho, Calvino e os pastores de Genebra, as cidades suíças de Berna, Zurique e Schaffhouse, além da católica Vienne e do próprio Serveto: todos pediam a sua morte. Intolerância típica do século XVI.
Crueldade? Por parte dos executores houve, sim. Mas, não se pode continuar imputando somente a Calvino a condenação de Serveto, muito menos atribuir-lhe crueldade. Se houve alguém que intercedeu para que não queimassem Serveto vivo na fogueira, esse foi Calvino.
Depois, as acusações de crueldade continuaram sendo dirigidas justamente contra aquele que desejou poupar Serveto, ainda que Serveto jamais desejasse isso para o próprio Calvino. Invertendo as posições, Serveto seria apoiado por Bethelier e outros opositores libertinos. Todos se deliciariam vendo Calvino arder na fogueira.
Crueldade? Sim, houve mesmo. Mas, não por conta de Calvino. Porém, como há requintes sempre lembrados, atribuem a crueldade à pessoa errada. Quem sentenciou Serveto foi o Pequeno Conselho de Genebra, apoiado por Berna, Zurique e Schaffhouse, Vienne. O Consistório e Calvino ganharam a disputa: era Calvino ou Serveto. O Pequeno Conselho deu ganho de causa a Calvino e condenou Serveto.
Após isso, aqueles que desconhecem a história condenaram Calvino e deram glórias de mártir a Serveto. Talvez isso se revista de crueldade histórica ou injustiça perante os fatos.
Reiterando, houve crueldade contra Serveto: uma coroa de espinhos com enxofre foi colocada sobre a cabeça do sentenciado. Foi usada lenha verde para que a fogueira durasse mais e para que o suplício fosse mais cruel e doloroso etc. Depois, some-se a isso o atribuir exclusivamente a Calvino a culpa por esse erro monumental. Na verdade, foi um erro infeliz e corriqueiro de uma cidade em seu contexto. Aliás, de várias cidades.
A católica Vienne já desejara fazer isso antes. Coube à protestante Genebra fazê-lo. Serveto morreu queimado duplamente: pelos católicos e pelos protestantes. Calvino foi o carrasco? A sentença foi cumprida pelo Pequeno Conselho de Genebra, num local chamado Champel, nas proximidades da cidade, no dia 27 de outubro de 1553.
O nome de Miguel Serveto deveria estar definitivamente incorporado à história da medicina. Serveto foi um precursor de Harvey na descoberta da circulação sanguínea. Foi Serveto quem primeiro descreveu a circulação pulmonar com exatidão, cem anos antes de Harvey. Curioso é que até mesmo a sua descoberta foi, por muito tempo, ignorada pela medicina oficial.
Lembram-se da execução e morte de Serveto. Esquecem a sua vida. Ele foi um médico de alto nível. Também foi um homem que desafiou a sua época, confrontou a liderança eclesiástica católica e depois a protestante. Insistiu em combater a doutrina da trindade e acabou sucumbindo, perdendo a batalha. Findou morto e como a constante pedra no sapato de Calvino, como o pomo de discórdia entre os que admiram e os que detestam Calvino. Verdade ou mentira? Antes de perguntar-se isso, deve-se questionar: verdade de qual época?
Foi condenado pelo catolicismo ainda medieval e penou sob o poder de um protestantismo ainda nascente e que pretendia deixar de lado os erros religiosos do medievalismo. No caso de Serveto verificou-se que quem de fato o executou foi o Pequeno Conselho de Genebra. Era o Pequeno Conselho ainda dominado pelos libertinos, pelas famílias Perrin e Berthelier.
Após essa condenação erroneamente conduzida, os libertinos caíram em descrédito em Genebra. Os “guilherminos” eram o partido que apoiava Calvino. Lutou pela volta do reformador à cidade em 1541. Agora, após o caso Serveto, em 1553, acabaram tomando o poder que pertencera aos libertinos ou “articulans” e favoreceram Calvino.
Como vingança, parece terem sido os próprios libertinos os primeiros a difamar Calvino e atribuir falsamente a condenação de Serveto ao reformador. Os libertinos o mataram. Caíram em descrédito. Perderam o poder do Pequeno Conselho. Então, fizeram de Calvino o bode expiatório de sua incompetência. Para muitos, o erro dos libertinos ainda vem sendo pago por Calvino.
O caso Serveto custou e ainda custa muito caro aos protestantes calvinistas. Até hoje, muitos deixam de estudar e conhecer a grandeza de Calvino devido ao polêmico episódio com os hereges, especialmente com Serveto. Muitos erraram, e somente o calvinismo ainda paga a conta.
A polêmica correu os séculos. Voltaire acusou Calvino por agir como o papa dos protestantes. Porém, depois Montesquieu reconheceu seu gênio e sugeriu que os genebrinos deveriam tornar bendito o dia que Calvino nasceu. Por mais contraditório que pareça, ao final Calvino se tornou um dos patronos dos direitos humanos, principalmente por ter lutado por algo maior que este erro compartilhado com os líderes de Genebra e demais cidades.
O próprio Pequeno Conselho de Genebra defendeu e implantou regras e pontos importantes que servem até hoje como referência mundial de democracia representativa. Calvino, em particular, defendeu a teoria do direito civil de resistir aos abusos do Estado, um problema filosófico-político de desobediência civil e do direito de revolta. Esse líder protestante, cujo destino se cruzou com o de Genebra, antecipou ideias que o colocaram entre os fundadores do pensamento político moderno.
Como uma pedra que se coloca sobre a questão, houve a corajosa atitude de reconhecimento do erro e o pedido público de desculpas por parte dos seguidores de Calvino, séculos após o trágico fato de 1553. Por ocasião dos 350 anos da morte de Serveto, em 1903, os protestantes de Genebra erigiram um monumento expiatório:
“Filhos respeitosos e agradecidos de Calvino, nosso grande reformador, mas condenando um erro que foi do seu século, e firmemente ligados à liberdade de consciência, segundo os autênticos princípios da Reforma e do Evangelho, erigimos esse monumento em 22 de outubro de 1903.”[6]
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NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
* Artigo extraído de SILVESTRE, Armando de Araújo. Calvino e o trato com os hereges em Genebra. Revista Reflexão, Campinas, 43(1):155-167, jan./jun., 2018. Disponível em: https://www.redalyc.org/jatsRepo/5765/576562065012/576562065012.pdf. Acesso em: 27 de mai. 2021.
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