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Destaques

✢ LANÇAMENTO DO LIVRO "JOÃO CALVINO: QUEM DIZEM QUE SOU?"

J. A. Lucas Guimarães Sob empréstimo da pergunta de Jesus aos discípulos foi publicada a décima obra da Série Calvino21 , intitulada: JOÃO CALVINO: "QUEM DIZEM QUE SOU?" – Esboços de retratos calvinianos  –   O rganizada pelo historiador e teólogo J. A. Lucas Guimarães, encontra-se a convicção de que a relação de seu contexto original com as identificações à pessoa de João Calvino desde sua morte, não é mera coincidência. Se lhe fosse oportuno um lance de existência atual, é possível que ele fizesse semelhante indagação, apesar de seu desinteresse por ela em sua existência. Desse modo, tem início o empenho de disponibilizar a verdade histórica da identidade e identificação de João Calvino: advogado, um dos principais líder da Reforma Protestante do século XVI, pastor na cidade de Genebra e escritor cristão, com vasta literatura legada à posteridade, com a íntegra apresentação do Evangelho de Cristo pela fiel exposição bíblica. Porque já se distanciam os limites dos 500 anos

✢ CALVINO: UMA BIOGRAFIA ┌ Bernard Cottret [I]

Bernard Cottret *

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Tu tens que te lembrar... para onde quer que formos a cruz de Jesus Cristo nos seguirá. – João Calvino, junho de 1549.[1]

Os Anos Sombrios: 1547–1555

Onde, então, está o jovem brilhante que deixamos em seus anos felizes? O que aconteceu com esse amante de Jesus Cristo? O que ocorreu com o escritor brilhante, o humanista, o orador animado pelo anúncio do evangelho? O que restou dez anos depois das esperanças formadas em Estrasburgo em 1538-1541? A maturidade de Calvino em Genebra pode ser reconhecida por sua nostalgia. Dúvidas, doravante, agarraram-no e o morderam. Que dúvidas? Calvino duvidaria de Deus? Claro que não. Mas ele duvidava, no entanto, e se questionava interminavelmente. Ele disse a seus amigos:

Se eu tivesse pensado apenas em minha própria vida e em meus interesses particulares, eu teria ido imediatamente para outro lugar. Mas quando penso na importância deste canto da terra para a propagação do reino de Cristo, é com razão que me ocupo em defendê-lo.[2]

Ele nada retinha de seus ouvintes, como por ocasião de um sermão sobre Jeremias:

Veja o que é feito hoje, não quero dizer no papado, mas em Genebra. Como os infelizes recebem os sermões que são dados a eles? ...Oh, nós não queremos este Evangelho aqui, vamos procurar por um diferente.[3]

Lutos e Lamentações

A vida privada do reformador foi definitivamente afetada durante sua permanência duradoura em Genebra. Idelette, sua esposa, levou uma existência de completa devoção, dividida entre a reverência pelo evangelho, o cuidado do marido e preocupações domésticas. Em 28 de julho de 1542, ela deu à luz a um filho, Jacques. Mas a criança foi prematura e sobreviveu apenas por um breve período. Nestas tristes circunstâncias, Calvino se voltou novamente, como sempre, para o seu Deus: “O Senhor infligiu em nós uma ferida grave e dolorosa na morte de nosso amado filho. Mas ele é nosso Pai. Ele sabia o que era bom para seus filhos.” (19 de agosto de 1542).[4] Apesar da extrema reserva que cerca a vida pessoal de Calvino, este luto parece ter tido imensa importância simbólica ao reformador, assim como a doença e a morte de sua esposa. No final de 1562, ele explicou: “O Senhor me deu um filho pequeno. Ele o levou embora... Em toda a cristandade tenho dez mil filhos.”[5] Após a perda de seu único filho, Idelette adoeceu em 1545. Ela morreu em 29 de março de 1549. Calvino sofreu terrivelmente com a sua morte. Ele expressou sua tristeza em duas cartas, para Farel e Viret. Na primeira, em 2 de abril, ele confidenciou:

Busco, tanto quanto possível, não ser inteiramente espancado pela dor. Ademais, meus amigos se reúnem ao meu redor e não se descuidam de nada para trazer algum consolo à tristeza de minha alma. [...] Eu devoro a minha tristeza a tal ponto que não tenho interrompido o meu trabalho no todo. Adeus, irmão e amigo fiel. [...] Que o Senhor Jesus o fortaleça com seu Espírito e a mim também nesta grande desgraça, que certamente me teria derrubado se não tivesse estendido a mão do céu, aquele cujo ofício é levantar os caídos, fortalecer os fracos, reanimar os cansados.[6]

E em 7 de abril, a Viret:

Embora a morte de minha esposa tenha sido muito cruel para mim, eu procuro tanto quanto possível controlar minha dor, e meus amigos competem no cumprimento de seu dever. Mas eu declaro que eles e eu, nós conseguimos menos resultados do que se poderia desejar... Fui privado da excelente companheira de minha vida, que, se a desgraça tivesse chegado, teria sido minha companheira voluntária, não só no exílio e na miséria, mas também na morte.[7]

Calvino não se casou novamente. No entanto, ele se recusou a idealizar o celibato, como explicou cinco anos depois em um sermão:

Eu não quero que seja atribuído a mim como uma virtude o não ser casado... conhecia a minha fraqueza, que talvez uma esposa não faria bem a mim. Por mais que isso seja, eu me abstenho de fazê-lo apenas para ser mais livre para servir a Deus. E isso não é porque eu me considero mais virtuoso do que meus irmãos.[8]

A virtude de seus irmãos não estava, infelizmente, em questão. Poder-se-ia desejar que tivesse sido um pouco mais. Antoine, irmão de Calvino, estava afligido por uma mulher de temperamento ardente. Sua natureza exuberante trazia alguma inquietação ao seu marido enganado. Na quinta-feira, 27 de setembro de 1548, Calvino levou seus medos ao Consistório:

M. João Calvino declarou que no domingo passado foi informado de um escândalo que tem afligido muito seu coração. É uma suspeita de adultério entre a esposa de seu irmão Antoine, Anne, filha de Nicolas Lefer,[9] e Jean, filho de Jean Chautemps.[10]

Naturalmente, Calvino pensou consigo mesmo, esses rumores malignos eram desprovidos de fundamento. Alguém queria comprometer sua cunhada, causando problemas em uma família respeitável. A ofensa foi a mais nítida, porque todos os Calvinos viviam juntos na mesma casa na rua dês Chanoines. Anne, a esposa de Antoine, foi dito ter resistido como um Estoico, subjugando os avanços desonestos de Jean Chautemps, que terminaram por confessar que ele “pediu desonra à dita Anne no domingo passado, e se arrependeu disso.” Mas a aflita esposa, felizmente, deve ter sido capaz de preservar seu bom senso ante aos avanços do jovem: “Se a dita Anne tivesse sido tão tola quanto ele, as coisas teriam corrido mal.”

No entanto, Chautemps fez de tudo para seduzi-la, indo tão longe a ponto de entrar em seu quarto à noite, enquanto Antoine estava na Borgonha. Os dois amantes foram detidos por terem cometido perversidade.[11] Anne foi libertada em 16 de outubro. No dia 18, com toda a solenidade, ela teve que se ajoelhar e pedir perdão ao marido, Antoine, bem como a João Calvino. Ele mesmo, ferido através dela. Na verdade, uma esposa culpada. A infeliz recaiu, menos de dez anos depois. Em janeiro de 1557, Anne foi presa por ter pecado com Pierre Daguet, um servo corcunda do marido. Este último, pediu o divórcio e acusou Daguet de vários roubos.[12] Assim, nenhuma vergonha foi poupada a uma família honrada e severamente julgada.

Com boas razões, Calvino sentiu-se o alvo da sociedade genebrina. Em março de 1551, ele reclamou que as pessoas estavam jogando tênis (ou estavam engajadas em outras atividades profanas que ele preferia calar) em frente à Catedral de Saint-Pierre, enquanto ele estava pregando lá dentro. A tensão aumentou. E Calvino ficou vermelho, quando alguém ousou replicar. Em 10 de setembro de 1552, ele advertiu contra o jogo de skittles, particularmente nocivo, especialmente quando era jogado nos dias em que a Ceia do Senhor era celebrada.[13] Em 19 de setembro de 1552, Calvino se referiu a músicos que deliberadamente cantavam “canções indecentes” com melodias sagradas de salmo.[14] A personalidade de Calvino e sua austeridade sexual trouxeram sobre ele todas as fofocas das tavernas, onde não hesitaram em chamá-lo de “sodomita”.[15] Em 24 de novembro de 1552, foi relatado que um barbeiro, aparentemente cansado da importância dada a Calvino e seus escritos, questionou se houve de fato “alguma necessidade de tantos livros, além da Bíblia e do Novo Testamento? E acrescentou ferozmente: “Monsieur Calvino não deveria deixar que ninguém lhe chamasse Monsieur Calvino ou Mestre Calvino.”[16]

O reformador, no entanto, conseguiu basear sua reputação solidamente em obras polêmicas bem escritas, nas quais ele havia analisado com habilidade de um clérigo, as diferentes heresias e perversões doutrinárias que aguardavam seus contemporâneos. O Nicodemismo, o Anabatismo, a Libertinismo espiritual e a astrologia judicial já não continham nenhum segredo sobre ele. Várias obras se seguiram de sua caneta: Um curto tratado mostrando o que um homem fiel deve fazer, quando ele está entre os papistas (1543); Apologia aos Nicodemitas e Breve instrução para armar todos os bons crentes contra os erros dos anabatistas (1544); A short treatise Showing what a faithful man should do ...when he is among the Papists (1543); Apology to the Nicodemites and brief instruction to arm all good believers against the errors of the Anabaptists (1544); An essay against the fantastic sect of Libertines who call themselves spiritual (1545). We must add the treatise on relics (1543) and the Warning against the Astrology called judicial (1549).[17] Todos esses textos culminaram no Tratado Sobre Escândalos de 1550. Poderíamos acrescentar também o admirável Consenso Tigurino, que em 1549 sistematizou posições Reformadas sobre Comunhão, e não deve esquecer, naturalmente, o impacto das Institutas. Calvino era de fato o autor de uma construção confessional e, em certo sentido, de acordo com a descrição de Emile Leonard, o “fundador de uma civilização.”[18] Sua mente ágil e seus dons como um polemista fizeram dele um extraordinário propagandista, que deixou para o mundo moderno uma fração apreciável de suas ideias, ou que pelo menos sistematizou seu uso. A palavra “instituição”, doravante, não se aplicava apenas à educação dos príncipes; passou da pedagogia humanista para o campo da política. Da mesma forma, a palavra “libertinismo”, ou pelo menos o reconhecimento de “libertinos”, deve muito à linguagem de Calvino.

O legado que ele deixou era estranho. “Libertinos espirituais”, de acordo com Calvino, não eram tão devassos quanto espíritos libertados que, em nome da graça dada por sua salvação, se sentiam emancipados da lei (bíblica) e das leis (civil). A palavra “Nicodemita”, em contraste, pertencia à linguagem dos estudiosos; Nicodemita era alguém que, internamente convencido da vaidade dos usos Católicos, externamente fingia se submeter a eles. Na realidade, Calvino não falava tanto de Nicodemitas como de supostos Nicodemitas que, inspirados pelo exemplo de Nicodemos, que vieram a Jesus em segredo, não revelaram suas convicções abertamente. Quanto à astrologia “judicial”, Calvino teve grande cuidado em distingui-la da astrologia científica, que chamaríamos de astronomia. Finalmente, suas reflexões sobre a Bíblia e sobre os sacramentos levaram a uma investigação de sua língua. O calvinismo dependia em grande parte de uma retórica; sua atenção à gramática e ao desenvolvimento de formas e figuras de linguagem já estava lançando as bases do classicismo francês. Reciprocamente, foi a partir da controvérsia anticalvinista que os Jesuítas e Jansenistas, e mais geralmente a contrarreforma católica, derivaram em reação sua maior originalidade. O calvinismo não era uma religião; a religião era o cristianismo, o cristianismo “reformado” ou o cristianismo “fingindo ser reformado”, dependendo de se alguém partilhava de suas ideias ou não. O calvinismo, por sua vez, era uma cultura.

“Essas pessoas”, exclamou Bossuet, não sem razão, “eram humanistas e gramáticos.” Bossuet, o polemista, Bossuet, o crítico de Calvino, enfatizou melhor que qualquer outro pensador do século XVII o caráter retórico do movimento reformado.[19] Confrontado com o mistério, Calvino agia de muitas maneiras como lógico ou gramático, tomando cuidado para fazer a linguagem. da fé transparente e expulsar toda a obscuridade inútil dela.[20]

Além disso, Calvino nunca afirmou ser o fundador de uma religião. Tal perspectiva o teria assustado por sua audácia sacrílega. Mas ele certamente deixou para o mundo moderno, direta ou indiretamente, com a ajuda de seus imitadores e seus detratores, uma fração apreciável de suas referências. Para começar, o desencantamento do universo e a denúncia da “superstição”, assumida por todos os clérigos antes dos livres pensadores, assumiram o ataque.

Franceses amaldiçoados

Eu vejo bem que você é francês; vocês outros franceses vêm fazer sinagogas aqui depois de expulsarem os homens honestos que disseram a verdade; mas em pouco tempo você será enviado para fazer suas sinagogas em outro lugar. –Novembro, 1546.[21]

Parcialmente dirigido contra Calvino, o sentimento antifrancês se estabeleceu em Genebra. Pierre Ameaux foi preso no final de janeiro de 1546 por ter amaldiçoado o grande homem, esse “Picard”, que pregava “falsa doutrina”.[22] Sendo um fabricante de cartas de jogo por comércio, Ameaux não tinha motivos para apreciar o rigor calvinista. Dois meses e meio depois, em 8 de abril, ele foi severamente castigado por sua ousadia; foi condenado a “fazer um circuito da cidade com a sua camisa, a sua cabeça descoberta, uma tocha acesa na mão.”[23]

Mais ou menos na mesma época, Claude, esposa de Durbin, disse que “esses franceses já são numerosos, e o Evangelho também está em toda parte em seu próprio país (7 de janeiro de 1546).[24] Ou então, em junho de 1547, o vigia François Mestrat chegou à rápida conclusão de que os franceses deveriam ser jogados no rio Ródano.[25] Em 26 de janeiro de 1548 Nicole Bromet era da opinião de que eles deveriam “pegar um barco e colocar todos os franceses e banir as pessoas para enviá-los Ródano abaixo”[26] – em outras palavras, colocá-los em um navio que descia o curso do Ródano. Em março, Millon, de Auvergne, foi expulso da cidade por ter composto baladas contra Calvino. O mesmo à senhora Grante, mãe de Ami Perrin, criticou duramente Calvino, a velha já não tinha muito a perder, e com a ousadia da velhice ela perseverou diante do consistório:

Ela continuou a lançar grandes insultos ao dito M. Calvino, entre os quais estão os seguintes: que ele veio a Genebra para nos lançar em debates e guerras, e que desde que ele chegou aqui não houve nem lucro nem paz... Além disso, ela o repreendeu por ele não viver como ele pregava, e por ela nunca ter encontrado amor nele, mas ele sempre a odiou. Além disso, ela nunca foi capaz de obter uma palavra de seu consolo. E porque ele protestou com ela por sua rebelião contra Deus e sua igreja, dizendo a ela que ela mal sabia o que era o cristianismo, ela respondeu que ela era uma cristã melhor do que ele e que ela pertencia à igreja numa época em que ele ainda estava as tabernas. E ela fez muitos outros insultos a alguns dos membros e cometeu tantas insolências que houve grande dificuldade e confusão no consistório.[27]

Esta deterioração estendeu-se aos próprios sermões. Calvino e seus colegas haviam acusado o Conselho de frouxidão moral:

Eles pregaram que não há justiça contra os fornicadores; agora, se eles aprenderem que há alguma fornicação ou outra coisa sinistra na cidade, antes de qualquer coisa que eles deveriam vir, revele-a”. para os magistrados sem a publicação do púlpito, por causa da audiência, tanto local como estrangeira.[28]

Em 21 de maio de 1548, foi relatado que Calvino havia reclamado que “os magistrados permitiam muitas insolências.” Ele foi convidado a explicar. O mesmo rumor persistiu a ressurgir novamente em julho, quando se disse que Calvino havia afirmado no púlpito que os “filhos de Genebra queriam diretamente derrubar o Evangelho e expulsar os ministros.” O ponto em questão era uma discussão estúpida sobre roupas: muitos genebrinos não suportariam ser censurados pelas cruzes que usavam em seus gibões. Estes, na verdade, não tinham nada a ver com idolatria ou superstição; eles eram insígnias suíças. Em outubro, Calvino foi duramente repreendido pelo Conselho, que implorou a ele que “cumprisse melhor seu dever outra vez.”[29] De fato, uma carta de Calvino havia sido interceptada algumas semanas antes, revelando que o reformador havia menosprezado os genebrinos. Como se pode explicar essas tensões entre genoveses e franceses nativos? Por outro lado, o que os franceses, “refugiados pela fé”, procuravam? O impressor Robert Estienne (1503-59) foi um bom exemplo desses exilados. Junto com Nicolas Cop, Laurent de Normandie e François e Louis Bude, filhos do grande Guillaume, ele pertencia à comitiva francesa de Calvino durante esses anos conturbados. O que Genebra ofereceu a ele? A “luz” do evangelho depois da “escuridão” do papado:

Eu lhe pergunto, pode-se acreditar que as trevas do Egito eram mais densas do que aquelas com que esses bons teólogos obscurecem, ou melhor, encantam os entendimentos dos homens, removendo suas almas de Cristo, que é o único salvador, espalhando em seu lugar a escuridão de seus pensamentos? – sendo inteiramente similar aos escribas e fariseus que por suas falácias arruinaram o povo judeu. Ora, onde há uma luz maior do que na igreja de Cristo, na qual é administrado todos os dias não o que os homens pensaram e planejaram, mas a pura Palavra de Deus, que revela as impiedades dos homens e seus pecados, retorna ao caminho daqueles que estão errantes e vagabundos, aponta a salvação que foi ordenada por Deus antes de todo tempo em Cristo, o único redentor, e nos traz e nos confirma na certa esperança da vida eterna; onde há também a administração pura e legítima dos sacramentos de acordo com o uso ordenado pelo Mestre?[30]

Estas observações piedosas, evidentemente, não impediram brigas internas. No tratado On Scandals (1550), há um eco dos conflitos internos de Genebra. Calvino menciona “aqueles que fazem guerra contra nós todos os dias” porque eles estão com raiva que alguém tire a liberdade de viver de acordo com sua própria vontade. Ele conclui que essas pessoas, descritas na passagem como “fornicadores, debochados e dissolutos”, estão a serviço do papa.[31] Um caso envolvendo mulheres desencadeou a explosão. Na quinta-feira, 23 de junho de 1547, várias mulheres apareceram diante do consistório por terem dançado. Entre elas estava Françoise Favre, segunda esposa de Ami Perrin. Ela já havia tratado com o consistório um ano antes (abril de 1546), quando, recusando-se a testemunhar contra vários de seus amigos que eram culpados de ter dançado, ela se levantou contra Calvino, incorrendo assim em vários dias de encarceramento. Desta vez ela estava determinada a resistir. Ela calmamente se recusou a conversar sobre isso e disse aos anciãos que não era para eles admoestá-la. Esta nobre tarefa pertencia no máximo ao marido. Suas “palavras ferozes e rebeldes” e “blasfêmias grosseiras” causaram certo calafrio.[32] No dia seguinte, o pastor Abel Poupin deixou a raiva explodir, e Françoise Perrin foi condenado a ser preso sob o controle do vigia Jean Blanc. Ami Perrin, o pobre marido dessa infeliz aventureira, estava na França em serviço designado, representando sua cidade antes de Henrique II, que sucedeu a Francisco I naquela primavera. Vários parentes, incluindo Pierre Tissot e Louis Bernard, intercederam pela esposa. Mas não adiantou. A excitação se instalou na cidade, onde vários rumores malignos contra Calvino circularam; um cartaz escrito em dialeto de Genebra foi postado no púlpito de Saint-Pierre. Lá Abel Poupin foi descrito sem rodeios como uma “grande barriga de banha”, enquanto os veneráveis ​​pastores apareciam como malditos sacerdotes renegados” que, mal desistiam de seus “monumentos”, pretendiam “soprar fumaça nos olhos” de todos. No meio de tudo isso, Ami Perrin retornou de sua jornada em setembro; ele correu para o Conselho “em grande ira”. Mostrou sua aflição e tocou o grande senhor, cumprimentando nobre a augusta assembleia. Dando um passo à frente, ele exclamou:

Senhores mais honrados!

Eu entendo que vocês estão pensando em aprisionar meu sogro e minha esposa. Meu dito sogro é velho, minha esposa está doente; aprisionando-os vocês encurtarão seus dias, para meu grande arrependimento, que eu não mereci de vocês e que seria para me dar uma pobre recompensa pelos serviços que lhe fiz. Por isso peço-lhe que não os aprisione. Se eles fizeram algo errado, eu os trarei aqui para fazer tais reparos, para que você tenha razão para se contentar. Peço-lhe que me conceda isso, pois, se vocês os colocarem na prisão, Deus me ajudará a me vingar por isso.[33]

Mas eles permaneceram frios às súplicas do pobre Perrin. Foi uma época de repressão. O autor do cartaz postado em Saint-Pierre contra Calvino também foi preso. Jacques Gruet admitiu seu crime sob tortura. Ele foi imediatamente executado no final de julho. Uma pessoa estranha, esse Gruet, cujos argumentos materialistas poderiam validamente ser considerados uma declaração de ateísmo. Seus documentos revelam pensamentos originais abundantes em negações do cristianismo. “Se eu quero dançar, pular, levar uma vida alegre, que negócio é da lei?” Ou ainda: “O mundo não teve começo e não terá fim.” “Aquele que foi chamado de Cristo, que disse que ele era o filho de Deus, por que ele suportou sua paixão?” “Eu acredito que quando um homem está morto, não há esperança para sua vida.” E assim por diante. Calvino rompeu com Gruet e seus escritos foram publicamente queimados em um alegre auto-de-fé em 1550. Gruet era um ateu? Provavelmente. Mas ele também era Gruet, um companheiro dos Favres e Perrins, Gruet o genovese, exasperado por Calvino e pela ordem moral que ele encarnou, contra e contra tudo.[34] Muitas famílias genebrinas, incluindo muitas líderes, suportaram cada vez mais supervisão do grande homem. Estes eram os Perrins, os Favres, os Septs e os Bertheliers, o núcleo duro da oposição a Calvino. Eles adotaram o título revelador de “Filhos de Genebra.” Eles foram maliciosamente chamados de “libertinos”, o título sob o qual eles passaram para a posteridade.

Ami Perrin

[Ami Perrin] queria estar elaboradamente vestido e viver bem, e não era apenas delicado em comer, o que significa desejar pouco, mas dos melhores, mas saborosos e glutões juntos, já que ele deve ter o melhor. – F. Bonivard.[35]

Ami Perrin amava a vida. “Nosso cômico césar” – foi assim que Calvino mais tarde descreveu esse amargo inimigo, aludindo rudemente ao seu caráter fanfarrão.[36] Devemos expandir nossa imagem desse personagem problemático. Seu pai era originalmente um comerciante em vasos de madeira, mas logo acrescentou uma segunda loja para vender tecidos. Este Perrin casou com a filha de um próspero farmacêutico piemontês. Eles tinham apenas um filho, a quem bajulavam e estragavam excessivamente, como diz a história.

Pode-se facilmente imaginar Ami Perrin, mais um glutão do que um bon vivant, dedicado a roupas e bom humor. Não é de surpreender que sua ligação com Calvino tenha sido de curta duração. Partidário de Calvino durante a década de 1530 e convencido de “Guillermin”, Perrin se considerou pouco recompensado por seu apoio. Calvino o havia dado a entender que ele não deveria esperar nenhum tratamento favorável dele.[37] Muitas coisas dividiram os dois homens; e então Perrin acrescentou ao seu apetite insaciável um lado jactador, versátil e cintilante, que se prestou a rimar:

Nosso capitão está tão zangado
Que seu sangue corre vermelho
Em seu rosto antes da batalha;
Mas quando ele começa a brigar, isso passa.

Ou novamente:

Equipado como um bravo São Jorge
E armado até os dentes,
Nosso capitão se mostra
Pessoalmente na reunião.[38]

Como poderia o prudente Calvino se entender com Sir John Falstaff, cujas palavras e vestimentas ricas escondiam uma covardia lendária? O próprio Calvino era magro como uma ripa, dizia apenas o que sabia e detestava arrogância. Perrin não estava sozinho; durante vários anos, Calvino incorreria na inimizade de um verdadeiro clã familiar. O patriarca da família, François Favre, pai da mulher que gostava de dançar, era um antigo Eidguenot, recentemente muito ativo no Conselho. Nascido em 1480, o comerciante ainda era vigoroso; se ele não tivesse sido censurado por suas escapadas em 1546, enquanto seu filho Gaspard adquiriu uma péssima reputação por praticar skittles durante os sermões?

Os sentimentos ficaram mais amargos. Em 23 de setembro de 1547, Francois Favre foi processado por ter dito que Calvino havia se proclamado bispo de Genebra. Ele também disse que os franceses haviam reduzido sua cidade à escravidão e que Calvino havia reintroduzido uma forma de confissão auricular: “É preciso recorrer a ele para recontar os pecados e reverenciar-se.”[39] Os antigos Favre, Perrin e sua esposa encontraram-se. novamente na prisão, junto com Laurent Megret, chamado “o Magnífico”. Acusações muito pesadas ​​foram feitas contra Megret e Perrin, que eram suspeitos de terem traído Genebra em benefício da França. Em 9 de outubro, Perrin foi privado de seu posto de capitão-geral. O motim também apareceu entre os ministros sobrecarregados, que se queixaram de que eram tratados como “cavalariços”. Ainda mais porque eles foram solicitados a pregar todas as manhãs, às custas, é verdade, de encurtar seus sermões (outubro de 1548). Em dezembro, a cidade estava à beira de uma revolta; no décimo sexto dia, Calvino interveio corajosamente entre a turba e o Concílio.

Na véspera de Natal, todos os ódios e rancores deviam ser reconciliados. Perrin e seu grupo deveriam perdoar as humilhações salutares que haviam recebido e participar solenemente da Ceia do Senhor. Nada fazendo. Perrin disse que ele estava com problemas em sua consciência e recusou educadamente a comunhão, afastando-se dela. O gesto foi interpretado como uma ameaça.[40] Quanto a Megret, ele não foi libertado até janeiro, perdendo também seus direitos de burguesia. Os piores temores foram justificados. Um ano depois, em 18 de janeiro de 1549, o Conselho publicou uma proclamação que atingiu os pastores de passagem:

Seguindo o exemplo dos bons reis da antiga igreja e também dos príncipes, senhores e magistrados cristãos que são governados pela Palavra de Deus, declaramos aos cidadãos, burgueses e habitantes de nossa cidade que estamos muito zangados e desagradou que as sagradas admoestações e protestos que lhes foram dados através da Palavra de Deus, que é pregada a eles diariamente, não tenham sido melhor observadas, como deveriam ter sido, e também que os mandamentos que temos dado não foram melhores seguiu e pôs em prática; em que os ministros da Palavra de Deus foram negligentes e não cumpriram seu dever de cumprir seu ofício, admoestando e reprovando o vício e dando bom exemplo, como são obrigados a fazer e a sua vocação requer.[41]

Alguns dias depois, Perrin tornou-se primeiro magistrado. Em uma atmosfera paranoica, Calvino reclamou em março que as pessoas vinham ouvir seus sermões para denunciá-lo depois. O caso de Philippe de Ecclesia forneceu um casus belli. De Ecclesia, cujo verdadeiro nome era Philippe Osias, era pastor de Vandoeuvres. Desde março de 1549, os ministros, com Calvino à frente, exigiram obstinadamente a remoção desse homem, seu colega, com aquela tendência encantadora de denúncia que periodicamente agarra almas simples, protetores de seus rebanhos. Mas o Conselho recusou até janeiro de 1553 No entanto, seus irmãos pastores não contiveram suas críticas a ele: usura, maus tratos de sua esposa e, naturalmente, opiniões erradas. Os genebrinos precisavam de pastores. Em setembro Calvino deixou cair o seguinte: “Alguns murmúrios, porque há tantos pregadores nesta cidade; agora, mesmo que houvesse muitos, seria com boa causa, já que há uma necessidade maior deles nesta cidade do que em qualquer outra.”[42]

Notas bibliográficas

[1] J. Calvin, Lettresfrançaises, ed. J. Bonnet, 2 vols. (Paris: Meyrueis, 1854), 1:303, June 10, 1549. 
[2] Opera Calvini (daqui em diante citado como OC) 13, col. 1187, lettertoBullinger, May 7, 1549.
[3] J. Calvin, SupplementaCalviniana (Neukirchen-Vluyn: NeukirchenerVerlag, 1971), 6:19-20, sermão de junho 24,1549, sobre Jer. 15:1-6.
[4] OC 11, col. 430.
[5] J. Calvin, Reponse... auxinjures de Balduin (1562), Opuscules, p. 1987. Citado por R. Stauffer, L’humanite de Calvin (Neuchatel: Delachaux&Niestle, 1964), pp. 26-27.
[6] OC 13, cols. 228-29.
[7] OC 13, col. 230.
[8] OC 53, col. 255, vigésimo primeiro sermão de 1 Timóteo, outono de 1554.
[9] Originalmente da França, seu pai, Nicolas Lefer, recebeu a burguesia de Genebra em 1555.
[10] Annales Calviniani, OC 21, col. 435.
[11] Annales Calviniani, OC 21, col. 437.
[12] Annales Calviniani, OC 21, cols. 658-59.
[13] Annales Calviniani, OC21, col. 517.
[14] Annales Calviniani, OC 21, col. 518.
[15] Annales Calviniani, OC 21, col. 523.
[16] Annales Calviniani, OC 21, col. 527.
[17] Petit traite montrant que cest que doitfaire un hommefidele… quand il est entre les papistes; Excuse a Messieurs les Nicodemites; Breve instruction, pour armer tous bons fideles contre les erreurs des Anabaptistes; Contre la secte fantastique des libertins qui se nomment spirituels; Traite des reliques; Avertissement contre Vastrologie quon appelle judiciaire.
[18] E. G. Leonard, Histoire generale du protestantisme, 3 vols. (Paris: PUT, 1961-64), l:258ss.
[19] Bossuet, Histoire des variations des £glises protestantes, 2 vols. (1688; Paris: Gamier, n.d.), 1:94.
[20] Bossuet percebeu as implicações teológicas da doutrina eucarística reformada. Ele formulou uma série de objeções, tanto metodológicas quanto mais estritamente teológicas, baseadas amplamente, além do mais, em Lutero como contra Calvino. Em primeiro lugar, por que empregar uma retórica tão complicada? “Lutero nunca conseguiu persuadir-se de que Jesus Cristo desejava deliberadamente obscurecer a instituição de seu sacramento ou de que palavras tão simples eram suscetíveis de figuras tão rebuscadas” (Bossuet, 1:58). Na verdade, foi o papel atribuído a Jesus Cristo que inquietou Bossuet; não era a união das duas naturezas, Jesus verdadeiro Deus e verdadeiro homem, em questão na Comunhão? Da mesma forma, se o termo “substância” desapareceu da definição eucarística, poderia ser preservado na fórmula da Trindade? Como você pode ter um Deus em três pessoas dotadas da mesma “substância” e se recusar a falar de “substância” no caso da Eucaristia (pp. 118-19)? Essas possíveis objeções sem dúvida explicam, por sua vez, a insistência de Calvino no dogma das duas naturezas e na Trindade, que sempre foi suspeito de não preservar. Um autor recente insiste na dificuldade que Calvino encontrou em pensar na encarnação de Cristo ou nas duas naturezas, ao mesmo tempo em que enfatiza a distância que separa o homem de Deus, banido para sua solidão. P. Le Gal, Le droit canonique dans la pensée dialectique de Jean Calvin (Friburgo: Editions Interuniversitaires, 1984), p. 103. A reprovação é, de fato, muito antiga; remonta a seus oponentes luteranos, que acusavam Calvino de não preservar a possibilidade de uma união real entre a humanidade e a divindade do Salvador – o que era chamado, em uma fórmula padrão, o extra Calvinisticum.
[21] Annales Calviniani, OC 21, col. 390.
[22] Annales Calviniani, OC21, col. 368, Registres du Conseil de Geneve 40, fol. 359.
[23] Annales Calviniani, OC 21, col. 377, Registres du Conseil 41, fol. 68.
[24] Annales Calviniani, OC 21, col. 367.
[25] Annales Calviniani, OC 21, col. 407.
[26] Annales Calviniani, OC 21, col. 420.
[27] Annales Calviniani, OC21, col. 423.
[28] Amedee Roget, L’Eglise et I’Etat a Geneve du temps de Calvin. Etude d’histoire político-ecclesiastique (Genebra: J. Jullien, 1867), pp. 43-44, para esta citação e a seguinte.
[29] Roget, p. 47.
[30] R. Estienne, Les censures des theologiens de Paris, par lesquelles Us avoyent faussement condamne les Bibles imprimees par Robert Estienne imprimeur du Roy: avec la responce d’iceluy Robert Estienne (1552), pp. 3-4.
[31] J. Calvin, Des scandales, ed. O. Fatio (Geneva: Droz, 1984), pp. 193-94.
[32] Annales Calviniani, OC21, col. 407.
[33] F. Bonivard, Advis et devis de I’ancienne et nouvelle police de Geneve, suivis des advis et devis de noblesse et de ses offices ou degrez et des III estats monarchiques, aristocratiques et democratiques . . . (Geneva: J. G. Pick, 1865), p. 73.
[34] Para este homem ver o artigo de F. Berriot do qual tomamos emprestado toda a nossa informação, “Un proces d’atheisme a Geneve: I’affaire Gruet (1547-1550)”, Bulletin de la Societe de I’Histoire du Protestantisme Francis 125 (1979): 577-92.
[35] Bonivard, p. 56.
[36] OC 14, col. 657, letter to Farel, outubro 26, 1553.
[37] OC 12, cols. 338ss., Calvino para Perrin, abril de 1546. Calvino não deixou dúvidas sobre sua intenção de fazer prevalecer a disciplina da igreja sem consideração pelas pessoas. Recordemos que Ami Perrin começou por ser o mais firme defensor do reformador, o chefe dos “Guillermins”, isto é, dos partidários de Guillaume Farel e João Calvino após a crise de 1538, e que foi ele quem desempenhou o papel de chefe papel no retorno de Calvino a Genebra. O bom entendimento entre os dois homens deveria ter durado mais alguns anos. Foi a esposa de Perrin, a terrível Françoise Favre, a responsável pelo distanciamento irremediável, e depois dela o clã Favre, seu pai e seu irmão, como resultado de suas brigas com o consistório. Henri Meylan, “Calvin et les hommes d’affaires”, em Regards contemporains sur Jean Calvin (Paris: PUF, 1965), p. 164.
[38] Bonivard, p. 58.
[39] Annales Calviniani, OC21, col. 413.
[40] Annales Calviniani, OC 21, col. 443.
[41] Roget,pp. 47-48.
[42] Roget, p. 49.
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* COTTRET, Bernard. Calvin: a biography. (Wm. B. Eerdmans Publishing, 2000). Tradução portuguesa de Antônio Reis. Disponível em: https://paleoortodoxo.wordpress.com/2022/04/11/calvino-uma-biografia/. Acesso em: 10/03/2024.
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A publicação de texto autoral, necessariamente, não implica em adesão ou apoio às suas ideias sobre João Calvino, mas apropriado ao objetivo do Calvino21.

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