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✢ CALVINO E SUAS DIVERSAS HERANÇAS NA TRADIÇÃO REFORMADA
Leopoldo Cervantes-Ortiz *
O Senhor me tinha dado um filho: privou-me dele [...] Em toda a Cristandade tenho dezenas de milhares de filhos.1 (João Calvino)
Calvino é uma catarata, um bosque primaveral, um poder demoníaco, algo que desceu diretamente do Himalaia, absolutamente chinês, estranho, mitológico; careço completamente dos meios, das ventosas para falar de ou para apresentá-lo adequadamente. [...] Poderia, alegre e com proveito submergir-me e dedicar o resto de minha vida a Calvino.2 (Karl Barth)
E, talvez, o mais humanista... Porque
qualquer aproximação à figura do reformador franco-genebrino, que ainda muito
jovem experimentou o fel da perseguição e do exílio, e que teve de ouvir a
feroz admoestação de seu compatriota Guilherme Farel para sair da torre de
marfim da erudição e enfrentar a enorme responsabilidade de conduzir os
destinos da Reforma ante o risco de sua desintegração ou assimilação aos
impulsos renovadores católico-romanos (“Farel me deteve em Genebra, nem tanto
por seus conselhos e exortação, mas por uma conjuração espantosa, como se Deus
tivesse estendido do lato sua mão sobre mim para me deter”, escreveria Calvino
em 1557),3 deve levar muito a sério o fato de que integrou, em sua
fé e em seu discurso teológico, uma ampla gama de elementos, como o mais
profundo respeito pela Palavra de Deus, o zelo genuíno pela fé dos apóstolos,
uma piedade profunda e provada, além de um amplo conhecimento da tradição
teológica da Igreja e do pensamento clássico.
Somente assim, devemos entender a
reivindicação-rehabilitação-reintegração que o Vaticano acaba de fazer com
Calvino ao reconhecer o peso específico de seu valor para o Cristianismo de
todos os tempos. Humanismo, catolicidade (no sentido de institucionalidade e
ordem) e impulso reformador, combinados numa única pessoa; pai espiritual dos
“gramáticos da fé”, como se chegou a conhecer os reformados de todas as
latitudes. Estes senhores – exclama Bossuet com razão – eram humanistas e
gramáticos. Bossuet, polemista, Bossuet, crítico de Calvino, destacou melhor do
que qualquer outro pensador do século XVII, o caráter retórico do movimento
reformado. Frente ao mistério, Calvino se comporta em muitos sentidos como
lógico ou gramático, preocupado em dar transparência à linguagem da fé e
eliminar toda obscuridade inútil.”4
Apenas uma semana antes da
comemoração da data exata do nascimento de Calvino, L’Osservatore Romano,
periódico oficial do Vaticano, publicou um texto de Alain Besançon, membro da
Academia Francesa, sobre a nova edição de Obras do Reformador publicada na
prestigiosa coleção La Pléyade (Gallimard, 2009, 1520 p.). Sob o título “Il
riformatore Che disincarnò l’Incarnazione” [O reformador que desencarnou a
Encarnação], o artigo de Besançon vai além das fronteiras de uma mera resenha e
se ocupa em ressaltar o impacto de Calvino nos países europeus, comparando-o
com os alcances realizados por Lutero. As primeiras palavras do artigo colocam
o reformador ao lado de Rousseau, como a dupla de figuras francesas que
provocaram transformações profundas na civilização ocidental:
“Poucos franceses deixam uma marca
duradoura, visível e reconhecida sobre a face da terra. Não me refiro àqueles
que lançaram uma moda intelectual ou artística [...] Menos ainda daqueles que
fazem parte já dos clássicos, como Montaigne, Pascal, Balzac, Cézanne e muitos
outros. Penso somente nos que incitaram uma parte da humanidade europeia e a
desviaram de seu caminho histórico habitual, que não tiveram a força de
imprimir-lhe outra direção. Não vejo mais do que dois: Rousseau, sem dúvida,
quem remodelou o século XIX e até o século XX, e, ainda mais, Calvino.”5
A notícia do aparecimento deste
texto na imprensa oficial vaticana deu volta ao mundo, sobretudo porque alguns
meios de comunicação a interpretaram como uma espécie de “reivindicação” ou
resgate do antigo herege do século XVI, o que não foi do gosto de muitos
católicos conservadores. Antes de mais nada, Besançon reconhece a Calvino como
um cristão, ortodoxo, que aceitou os principais credos antigos:
“Era um cristão que cria na Igreja
uma, santa, católica, embora preferisse dizer universal e apostólica.[...] Cria
na Trindade, no pecado original, a salvação através de Jesus Cristo e, embora
não gostasse que se rezasse à Mãe de Deus, cria firmemente em sua virgindade
perpétua. Ao contrário do que se diz, cria na presença real [de Cristo na
Eucaristia], embora não admitisse a concepção católica da transubstanciação.”6
Muito tempo antes de Besançon,
Alexandre Ganoczy y Jesus Larriba assinalaram as enormes coincidência de Calvino
com o pensamento católico, especialmente em relação a realização do Concílio
Vaticano II.7 Não se deve esquecer que, em seu exílio em
Estrasburgo, Calvino participou de reuniões preparatórias do Concílio de
Trento, que hoje seriam qualificadas de “ecumênicas”.8 Para
Ganoczy, especialmente, o reformador e jurista foi “o mais católico” dos
dirigentes da chamada “reforma magisterial”, por sua ênfase institucional e sua
imagem da Igreja como “mãe dos crentes”, frase que para muitos ouvidos
protestantes era irremissivelmente romanista e que, entretanto, foi retomada
recentemente por calvinólogos, como o valdense italiano Emídio Campi.9
Parece mentira, mas depois de 500
anos ainda não fica muito claro de quem falamos ao referir-nos a Calvino,
principalmente por causa dos extremismos produzidos, por um lado, pela calvinolatria
ou calvinomania presentes em muitos círculos ligados a sua tradição e,
por outro, por causa das interpretações de sua vida e influência que o mostram
somente como alguém que exercitou autoritariamente o escasso poder que obteve.
Além das festividades, em vários países se continua analisando a figura de
Calvino, o que, sem dúvida, produzirá mais elementos de juízo para se alcançar
critérios mais equilibrados de julgamento. Na Espanha, por exemplo, e a
propósito de um par de biografias de autores franceses (Bernard Cottret10
e Denis Crouzet11), Marta Garcia Alonso se pergunta pela pessoa de
Calvino e responde de uma maneira muito simples: “Um pastor protestante que
exerceu sua atividade na cidade de Genebra lá pelo século XVI.”12 .
A reação é imediata: “Por uma pessoa assim, por que então tanto barulho no
aniversário de seu nascimento? Mas Garcia Alonso acrescenta:
Calvino, com efeito, soube
multiplicar-se [...] Calvino inicia a partir de Genebra difusão de seu credo
com um êxito que, retrospectivamente, só pode ser qualificado de extraordinário
[...] Aqui começa a multiplicação do calvinismo, assim como a doutrina de
Calvino evoluía à vista das circunstâncias que lhe tocou viver em Genebra,
continuaria desenvolvendo-se depois de sua morte na medida em que proliferavam
as igrejas que nela encontraram a sua inspiração [...] Mas aqui também começa o
conflito dos exegetas: quem foi verdadeiramente Calvino multiplicado e qual a
sua doutrina ?13
Assim, por causa de tantas
interpretações contraditórias, ao se falar de Calvino, é preciso sempre se
perguntar: De quem falamos? Do Calvino “fundamentalista” das igrejas mais
conservadoras ou do “modernista” das comunidades ligadas ao movimento
ecumênico? Do liberal (se é que este existiu), estandarte das mudanças sociais,
ideológicas e culturais, ou do conservador, bandeira de alguns muitos grupos
religiosos? Mas, ainda mais, para responder adequadamente à pergunta faz-se
necessário focalizar suficientemente os diversos “filtros” pelos quais seus
ensinamentos passaram, e responder a uma outra pergunta fundamental: a quem nos
estamos referindo: a Calvino, como figura fundadora, ou aos calvinismos
históricos? Porque sempre existiram os “filtros” para se aproximar a ele e à
sua herança, isto é, intermediários de vários tipos que deixaram suas pegadas
na transmissão da doutrina calviniana. É verdade que esta não pode definir-se
como algo puro ou intocável, entretanto, algumas das mediações que se assumem a
si mesmas como “calvinistas” se apresentam, à vezes, como as depositárias
genuínas (e inclusive únicas) do verdadeiro legado de Calvino.
Uma consequência obrigada desta
temática é o interessantíssimo tópico dos intérpretes de Calvino, de tal forma
que, parafraseando a São Paulo, alguns quase que poderiam dizer: “meu Calvino é
o de Spurgeon, o de Kuyper, o de Barth, o de Moltmann, o de Lukas Vischer, ou
mesmo o de Gerardo Nyenhuis...”. Esta variedade hermenêutica deve, necessariamente,
ser revisada para se descobrir (e se exibir, se for o caso) as marcas
ideológicas que “embaçam”, por assim dizer, a compreensão e a aplicação do
legado calviniano às diferentes circunstâncias. Um exemplo é a impossibilidade
real de se basear em textos de Calvino para promover a ordenação das mulheres,
passando por alto, obviamente, a tragicômica possibilidade de que se Calvino
vivesse hoje entre nós, seria um pastor ou teólogo marcado pelo estigma da
libertação e da reivindicação das minorias na Igreja; para dizer o mínimo,
estaria lutando contra a intolerância em Chiapas ou em Oaxaca (como o fez em
seu país) e, evidentemente, com a escassa simpatia de boa parte dos
representantes de sua tradição. O certo é que, para dizê-lo com clareza, cada qual
tem o Calvino que merece... ou o que lhe convém, na medida em que, como
acontece com os nomes influentes em todos os campos, as diferentes zonas de
influência se apropriam daquilo que melhor lhes servem ou se adapta às suas
necessidades. O professor Andrew Pettegree se ocupou em descrever este processo
normal de apropriação, adaptação e mesmo de saque nos seguintes termos:
“Como o movimento de Calvino se
disseminou e enraizou nos anos posteriores a 1560, necessariamente se adaptou a
uma enorme variedade de circunstâncias diversas em igrejas nacionais,
cidades-Estado, onde o poder estatal cooperava com a Igreja como em Genebra, ou
lhe era francamente hostil. Em diferentes partes da Europa, alguns aspectos do
ensino calviniano pareciam mais ou menos aplicáveis ou apropriados. Houve
igrejas que, não obstante seu apreço por Calvino, quando a ocasião lhe exigia, deixavam
de lado seu pensamento em questões conflituosas.”14
Muita água passou por baixo da
ponte. 500 anos depois do nascimento do reformador francês João Calvino,
acumularam-se muitíssimas interpretações de sua vida e de seu legado. De forma
unânime ele é reconhecido como o continuador e consolidador do impulso
reformador iniciado por Lutero na Alemanha e Zwinglio na Suíça, e, também, como
o mais notável integrante de uma nova geração de dirigentes religiosos que
buscavam uma transformação profunda na vida da Igreja. Seu trabalho em Genebra,
cidade que chegou a ser o eixo da Reforma, principalmente seu trabalho de
interpretação bíblica, teológica e pastoral foi objeto dos mais inimagináveis
estudos, dos mais exaltados até às qualificações mais azedas.
Tanto em círculos acadêmicos como
nos eclesiásticos, o nome de Calvino está associado a uma série de mitos, preconceitos
e caricaturas que vale a pena descrever e procurar desmontá-los com a
perspectiva de superá-los para alcançar uma visão mais equilibrada que supere
as ênfases apologéticas e hagiográficas. O Rev. Peter Wyatt descreveu alguns
mitos cuja discussão pode servir para penetrar nos grandes temas com os quais
se relaciona a figura de Calvino e que representam uma parte da enorme
plataforma de incompreensão que se criou ao seu redor.15 Sem dúvida
de que muitos outros poderiam ser incluídos mas, numa visão panorâmica, podem
ajudar a vislumbrar um território que tem sido patrimônio de biógrafos,
historiadores e teólogos.
O primeiro mito tem a ver com a
suposta teocracia que Calvino estabeleceu em Genebra: depois de sua primeira
estada de dois anos, permaneceu o resto de sua vida na cidade, mas não foi
senão na avançada década de 1550 que obteve a sua cidadania. Sua função
essencial foi a de pastor e professor de Bíblia. O controle político de Genebra
quase sempre esteve na mão de seus opositores.
O segundo mito se refere à
afirmação de que Calvino desacreditava radicalmente da bondade humana. Não
obstante, filósofos como Wilhelm Dilthey assinalaram que, embora Calvino tenha
falado duramente sobre o pecado humano, ele mesmo exaltou, como poucos, a
dignidade e o destino da humanidade. Com respeito a isto é muito útil esta
citação de Brian Gerrish: “A indignação de Calvino para com a ingratidão do ser
humano e não sua indignação com a humanidade, é o que está por trás de sua
retórica do pecado e da depravação.” O mito seguinte afirma que o reformador
foi “um partidário implacável da disciplina”, algo que, evidentemente, poderia
ser aplicado, sem dúvidas, a sua vida pessoal, mas nem tanto no âmbito de seu
trabalho comunitário, especialmente pelo que adverte Wyatt sobre as reuniões
semanais de Calvino e sua equipe pastoral, quando se mostravam muito mais
interessados na compreensão e na restauração do que na aplicação de castigos.
Entretanto, até mesmo Karl Barth, um dos comentaristas mais lúcidos da obra do
reformador, chegou a dizer, não sem uma pitada de humor, que ele não teria
gostado de viver na “santa cidade” de Calvino, por causa da disciplina de ferro
que ali se aplicava.
Outro mito, muito ligado ao
anterior, tem a ver com a afirmação de que Calvino era um obcecado pela
moralidade pessoal, um assunto que, certamente, lhe causou grandes problemas,
pois a filha de sua esposa e uma cunhada incorreram em adultério, situação que
o envergonhou profundamente.16 Na verdade Calvino insistia nas
exigências éticas do Reino de Deus, pois acreditava que estas respondem à
maneira pela qual a sociedade se encaminha para uma transformação concreta em
termos do bem comum. Poder-se-ia dizer, de maneira mais atual, que a
Calvino lhe preocupavam muito mais os “pecados estruturais” que as simples
faltas individuais. Neste sentido, o objetivo teológico fundamental é “prestar
toda a glória a Deus” em todas as áreas da vida, assim como o reconhecimento da
criação inteira como cenário natural para a manifestação da magnificência divina,
inclusive na perspectiva de certos grupos hoje, envolvidos com a luta
ecológica.
A imagem de Calvino como promotor
e paladino da auto-negação é outro mito fortemente enraizado, pois expressões
tais como “mortificar a carne” ou “levar a cruz” passam hoje pelo filtro da
reivindicação da dignidade humana. Assim, é nesse rumo que iam as idéias
calvinianas sobre a auto-negação, entendidas como capazes de gerar ajuda para
os mais desfavorecidos. Como comenta Wyatt: “Ao promover uma ética da
auto-negação Calvino chamava os que eram relativamente ricos a dar algo de seu
sustento para o benefício de outros” A base desta proposta era uma consequência
da Fé na imagem de Deus nos seres humanos, razão de ser da preocupação pelo
próximo. Alguns analistas viram nestas ideias o germe de uma autêntica teologia
libertadora.
“Calvino, pai do capitalismo”:
talvez seja este o mito mais divulgado no campo das ciências sociais e o que
gera mais antipatias, principalmente porque, nestes tempos hiper-globalizados
este sistema econômico ficou quase órfão, porque ninguém deseja assumir sua
paternidade. Calvino, já sem poder defender-se, seria uma espécie de “vilão
favorito”. Ele acusado, principalmente, de permitir os empréstimos com juros,
algo que certa crítica católica parece que nunca lhe perdoará. O certo é que as
claras conexões da espiritualidade reformada com as bases mesmas da modernidade
fizeram com que esta fé aparecesse como um dos fatores que permitiram o
desenvolvimento do chamado “espírito capitalista”, particularmente em sua
versão inglesa e estadunidense. O promotor mais notável desta interpretação da
história econômica foi Max Weber, um dos fundadores da sociologia, graças a sua
conhecidíssima obra A ética protestante e o espírito do capitalismo. O
que se deveria saber melhor é que Weber não analisou diretamente o pensamento
calviniano, mas que trabalhou, sobretudo, as derivações inglesas (a Confissão
de Fé de Westminster) e estadunidense (as ideias de Benjamin Franklin, entre
outros). Afortunadamente o professor mexicano Francisco Gil Villegas produziu
uma edição crítica do livro de Weber, no qual apresenta as necessárias
distinções e explica, cuidadosamente, a relação entre fé puritana na
predestinação e a “tradução econômica” dessa variante teológica calvinista. Villegas
pergunta: “Como interpretava o mundo o tipo ideal do calvinista puritano do
século VII?” Responde, então, com uma profundidade pouco comum entre os
estudiosos alheios à teologia:
“Deus é um ser onipotente e
onisciente que já sabe, de antemão, quais neste mundo se salvarão e quais estão
condenados a ser réus do fogo eterno; não podemos saber com certeza se estamos
dentro dos predestinados à salvação, mas sim que podemos minimizar os sinais
externos que nos identificariam como predestinados à condenação. Devemos
trabalhar neste mundo tanto para aliviar a angústia de nossa possível
condenação, como para que os frutos de nosso trabalho sirvam de oferta para
glorificar ao Senhor. Não podemos ter nenhum tipo de contato místico com Deus
porque ele é só pureza e nós somos imundos; tampouco podemos buscar a salvação
por meio de rituais mágicos como o da eucaristia, nem fazer arranjos de
contador entre nossos pecados e sua absolvição por meio de sacramentos, da
maneira como isso é feito no catolicismo.
[...] Nossa conduta deve ser a de
trabalhar muito, economizar nossos ganhos e não gastá-los em bens suntuosos ou em
luxos, porque isto poderia ser um sinal inequívoco de estarmos predestinados à perdição.
Em todo caso nossas economias devem ser investidas em obras que sirvam para
honrar e enaltecer a glória do Senhor.17
Nesta linha de pensamento muitos
crentes da tradição anglo-saxônica passaram a considerar o bem-estar econômico
como uma maneira de comprovar que tinham sido eleitos por Deus para a salvação,
o que constitui o sétimo mito, isto é, uma compreensão do trabalho que também
foi vista como um efeito pernicioso das ideias calvinianas. A prosperidade
econômica deve ser vista, melhor, como resultado do esforço que uma pessoa
realiza em sua busca livre e prazerosa para servir da melhor forma a extensão
do Reino de Deus. Sua ação, afirma Wyatt, acontece como “uma resposta
agradecida à graça inquebrantável de Deus”.
Simpático ou não, pois como disse
numa entrevista, com muito humor, a pastora e teóloga francesa Isabelle
Graesslé, diretora do Museu Internacional da Reforma, às vezes nem sequer para
os próprios calvinistas é uma figura muito atraente18, Calvino
continua causando controvérsias meio milênio depois de seu nascimento. A
tradição teológica que segue os seus passos insiste, em plena celebração, que o
impacto do reformador supera, em muito, o mero aspecto eclesiástico e que suas
pegadas podem ser percebidas em muitos âmbitos da existência social, política e
cultural. Ainda há muita coisa para ser analisada.
Com base no exposto até aqui,
entre as muitas opções, possibilidades de desenvolvimento e mutações da herança
calviniana, cinco séculos depois proliferam enfoques de todos os tipos e
aplicações. Exemplificaremos algumas das mais chamativas. A revista Time, numa
pesquisa sobre as 10 forças que movem o mundo, encontrou que o chamado
“neo-calvinismo” é uma das primeiras. Entretanto, para alguns observadores,
esta corrente não é mais que um retorno ao conservadorismo disfarçado de
suposta renovação.19 Richard J. Mouw, presidente do Seminário
Fuller, em seu livro Calvinism in the Las Vegas Airport. Making connections
in the modern world, [Calvinismo no Aeroporto de Las Vegas. Fazendo
conexões no mundo moderno, Grand Rapids, Zondervan, 2004] sugere que esta
corrente, bem entendida como uma religião dúctil, serve muito bem para viajar e
“fazer conexões” (como reza o subtítulo) no melhor espírito pós-moderno.20
Em espanhol, continuam as abordagens acerca das influências de Calvino sobre o
surgimento do Estado moderno, algo que em outras latitudes não é nenhuma
novidade, mas que nessa cultura continua sendo quase uma descoberta. Exemplo
disso é o livro de José Antonio Álvarez Caperochipi, que revisa o impacto
jurídico do movimento religioso e, no capítulo dedicado a Calvino, parte dos
aspectos eclesiásticos e da predestinação para aterrissar nos princípios de
organização das comunidades reformadas e daí, levantar a origem e o
desenvolvimento da teoria do Estado segundo o Reformador, abordando dois
aspectos fundamentais: o direito à resistência e os inícios da sociedade
democrática. No capítulo seguinte se ocupa de como se secularizou o calvinismo
na Inglaterra.21
Na Suíça, a pastora Isabelle
Graesslé, na já anteriormente citada entrevista afirma de forma categórica: “O
Calvinismo crê que todos somos iguais” e argumenta, entre outras coisas; “Não
merecemos a salvação, mas isto não justifica que fiquemos de braços cruzados.”22
A despreocupação com que se expressa Graesslé é uma postura que faz muita falta
nos círculos reformados, precisamente na busca de um maior diálogo com as
perspectivas atuais, menos orientadas para o dogmatismo de outros tempos. Uma
relação impensada, a partir da América Latina, é a que oferece o Rev. Obed
Vizcaíno entre calvinismo e chavismo, pois como parte dos novos rostos da fé
reformada em nosso continente, também é preciso enfrentar os dilemas políticos
com os recursos da tradição religiosa. Evidentemente, uma aposta desta natureza
pode ser revista segundo as mudanças das conjunturas, mas arriscar uma postura
não é algo muito frequente. Isto porque estas palavras são sumamente enfáticas:
“A Igreja Presbiteriana de Venezuela (calvinista) conjuntamente com outras
igrejas evangélicas do país, tem sido vanguarda em muitos processos
libertadores que temos vivido em nossa pátria em diferentes momentos
históricos.” 23 A contribuição calvinista, neste caso, oferece uma
ferramenta de análise histórica e ideológica da própria experiência.
Finalmente, da Turquia chega a
notícia de que existe uma sorte de “calvinismo islâmico”, isto é, que por fim o
espírito empresarial está entrando nas categorias mentais e práticas do mundo
islâmico num país que seja, a todo custo, tornar-se europeu. Para tal fim
alguns empresários tem “descoberto” que suas industrias só poderão se
desenvolver se puserem para funcionar o “espírito calvinista” da economia. Como
afirma Sukru Karatepe, ex-prefeito da cidade de Kayseri: “Tinha lido Weber,
quem escreveu sobre como os calvinistas trabalham duro, economizam dinheiro e,
em seguida, o reinvestem em negócios”.24 Assim, para além da
morbosidade de alguns blogs e sítios da Web, empenhados em mostrar o
“rosto escuro” de Calvino (algo que os calvinólogos de todos os signos já
fizeram até cansar...) é possível encontrar leituras e aplicações de todos os
tipos para a influência do reformador francês, especialmente nestes tempos
quando tudo passa pelo crivo da crítica e quando é possível construir e
desenvolver múltiplos perfis interpretativos que continuam pondo sobre a mesa a
atualidade de Calvino e sua, muitas vezes, imprevisível influência.
* Teólogo, médico, poeta e escritor mexicano. Pastor da Igreja
Presbiteriana Nacional de México. Coordenador do Centro Basilea de Investigación
y Apoyo e editor da revista eletrônica elpoemaseminal. Autor de vários
livros dentre eles “Série de sonhos – A teologia ludo-erótica- poética de Rubem
Alves.”
1 Calvino, J. Réponse...aux injures de Balduin. Opuscules (1562)
apud Cottret,B. Calvino: la fuerza y la debilidad.Medrid: Univ. Complutense,
2001, o.174.
2 Barth-Thurneysen Correspondence: Revolutionary Theology in the making.
Trad. de Smart, J.D. Richmond: John Knox Press, 1964, p. 101.
3 Cit. Por Cottret, B., op.cit., p.113.
4 Cottret, B., op.cit., p.177. Ênfase do autor. A citação de
J.B. Bossuet procede de Histoire des variations des Églises protestantes.
Paris, Garnier, 1688.
5 Besançon, A. “Il riformatore Che disincarnò l’Incarnazione”, em L’Osservatore
Romano, 3 de julho de 2009, www.vatican.va/news_services/or/or_quo/cultura/150q05a1.html
Versão de LC-O.
6 Cit. Por “O Vaticano destaca a figura de Calvino”, em El
Universal, 2 de julho de 2009, www.eluniversal.com.mx/notas/609063.html
7 Ganoczy, A., “Calvino e a opinião dos católicos de hoje”, em Concilium,
n. 14, abril de 1966: O pensamento eminente e sistematicamente ‘eclesial’ do
reformador de Genebra é, certamente, afim à eclesiologia católica atual. Vários
pontos essenciais da colegialidade promulgada no C. Vaticano II, por exemplo,
parecem estar contidos na doutrina calvinista da Igreja.” Cf. Larriba, J. Eclesiologia
y Antropologia em Calvino. Madrid: Cristiandad, 1975.
8 Cf. Vischer, L., Pia Conspiratio. Calvin on the unity of Christ’s
Church. Genebra: John Knox Center, 2000 (Serie J. Knox, 12),p. 38:” Em seus
anos iniciais de ação, Calvino aceitou participar em conversações onde se
negociavam em suas frentes: em Frankfurt (1539), Hagenau (1540), Worms (1541)
e, como delegado de Estrasburgo, em Regensburg (1541). Mesmo não tendo ilusões
acerca das possibilidades de um acordo, a impaciência que se adverte em suas
cartas é suficiente evidência de que aproveitou cada oportunidade para
trabalhar mediante a controvérsia em busca da verdade.”
9 Cf. Campi, E., “Calvin’s understanding of the Church and its relevance
for the ecumenical movement”, palestra apresentada na Consulta Internacional de
preparação do Jubileu de Calvino. Genebra, em 16/04/2007, www.calvin09.org/media/pdf/theo/070905_Campi_Calvin-Eclesiology.pdf
10 Cottret, B., op.cit.
11 Crouzet, D., Calvino. Tradu. De I. Fierro. Barcelona: Ariel, 2001.
12 Garcia Alonso, M., “Quien fue Calvino?”, en Revista de Libros,
90, 2004. Universidad Nacional de Educación a Distância, http://
e-spacio.uned.es.
13 Idem.
14 Pettegree, A. “The spread of Calvin thought”, en Mckim, D., ed., The
Cambridge Companion to John Calvin, Cambridge University Press, 2004, p.
208.
15 Wyatt, P. “Seven Myths about Johon Calvin” [Sete mitos sobre
Calvino], em The United Church Observer, Canada, junho de 2009, www.ucobserver.org/faith/2009/06/john_calvin.
A versão em espanhol é de Rubén Arjona M., em El Faro , maio-junho de 2009, PP.
90-92, www.publicacioneselfaro.com.mx.16 Cottret,
B. op.cit., p.175.
17 Cf. Villegas, G.F., “Introducción del editor”, em La ética
protestante y el espíritu del capitalismo. TGradução ao español de L. Legaz
lacambra, México: Fondo de Cultura Económica, 2003, p.30. Na p.28 Villegas
escribe: “ Weber se interessou em estudar essa mentalidade moderna, que na
“época heróica do capitalismo” do século XVI ao XVIII se foi impondo sobre a
mentalidade do tradicionalismo econômico. A nova mentalidade teve a sua mais
clara expressão nos setores sociais que eram os portadores históricos do
ascetismo intra-mundano derivado da Reforma protestante em suas variantes do
calvinismo, o pietismo, o metodismo, o puritanismo e as diversas seitas
batistas”. (Ênfase do autor)
18 Couto, R. Carrizo, “La Iglesia católica ha roto con la tradición de
tolerancia” , El País, Madrid 8/06/09 www.elpais.com/artículo/sociedad/Iglesia/católica/ha/roto/tradición/tolerancia/elpepisoc/20090608elpepisoc_6/Tes.
19 van Biema, David, “The new Calvinism”, em www.com/time/specials/packages/article/0,28804,1884782_1884760,00html
20 Cf. Jones, Brian, “Calkvinism in the Las Vegas Airport, by Richard J. Mouw”,
em http:// brianjones.org/books/bookreview-calvinism-in-the-las-vegas-
airport-by-richard-mouw.
21 Cf. Álvarez Caperochipi, J.A., Reforma Protrestante y Estado
Moderno. Granada: Comares, 2008.
22 Couto, R. Carrizo, op.cit.
23 Nájera, O. Vizcaíno, “Carta al señor general Muller Rojas sobre el
Calvinismo”, em El Faro, maio-junho de 2009, p. 92. Originalmente em www.aporrea.org/actualidad/a62553.html
24 Cf. Lodhi, Aasiya, “El Calvinismo islámico turco”, en BBC Mundo, 13
de março de 2006.
http://news.bbc.co.uk/hi/spanish/business/newsid_4801000/4801882.stm.
Fonte
Revista Tempo e Presença. http://www.koinonia.org.br/tpdigital/detalhes.asp?cod_artigo=337&cod_boletim=18&tipo=Artigo
Os artigos publicados no blog não significa apoio à opinião do autor. O objetivo do blog é divulgar pesquisas e literaturas de/sobre João Calvino.
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