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✢ CALVINO EM MICHEL FOUCAULT
Os filósofos de nossas academias de Filosofia jamais produziriam a análise que segue, onde Foucault dialoga com o pensamento de João Calvino (1509-1564), revelando sua singularidade no curso da evolução da temática sob relatório de sua pesquisa, publicado em seu livro intitulado História da Loucura (Perspectiva, 1978). Não significa que ele não se oponha ao pensamento calviniano nas demais pesquisas publicadas ou que não seja passivo de crítica em alguma consideração ao reformador suíço. O que se pretende mostrar nessa referência do trabalho de Foucault, é o fato dele não preferir se indispor com determinado pensador em razão de sua religiosidade e se negar à pesquisa sobre a pertinência de seu pensamento, privando-o de legar devida contribuição ao seu trabalho e ao avanço no conhecimento de seu objeto.
No andamento de seu relato da pesquisa, então, publicado em seu livro, Foucault argumenta:
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O velho tema cristão segundo o qual o mundo é uma loucura aos olhos de Deus rejuvenesce no século XVI, nessa dialética estrita da reciprocidade. O homem acredita ver claramente, e que ele é a medida das coisas; o conhecimento que ele tem, que acredita ter do mundo, confirma-o em sua complacência:
Se olharmos para baixo, em plena luz do dia, ou se olharmos à nossa volta, por aqui ou por ali, parece que temos o olhar mais aguçado em que possamos pensar...
Mas se olharmos para o próprio sol, somos obrigados a confessar que nossa compreensão das coisas terrestres é "temporã e inconveniente quando se trata de ir ao sol." Esta conversão, quase platônica, na direção do sol do ser, não descobre entretanto, com a verdade, o fundamento das aparências; ela revela apenas o abismo de nosso próprio desatino:
Se começarmos a elevar nossos pensamentos a Deus... aquilo que nos causava prazer sob o título de sabedoria se revelará apenas loucura, e aquilo que tinha um belo rosto de virtude revelará ser apenas debilidade.[1]
Ascender, pelo espírito, até Deus, e sondar o abismo insensato em que estamos mergulhados constitui uma única coisa; na experiência de Calvino, a loucura é a medida própria do homem quando é este comparado à razão desmesurada de Deus.
O abismo da loucura em que estão mergulhados os homens é tal que a aparência de verdade que nele se encontra é simultaneamente sua rigorosa contradição. Mas há mais ainda: esta contradição entre aparência e verdade já está presente no próprio interior da aparência, pois se a aparência fosse coerente consigo mesma, ela seria pelo menos uma alusão à verdade e como que sua forma vazia. Ê nas próprias coisas que se deve descobrir essa inversão – inversão que, a partir desse momento, não terá direção única nem termo preestabelecido; não da aparência em direção à verdade, mas da aparência em direção dessa outra que a nega, depois novamente na direção daquilo que contesta e renega essa negação, de modo que o movimento não se detém nunca, e antes mesmo dessa grande conversão que exigia Calvino ou Franck, Erasmo se sabe detido pelas mil conversões menores que a aparência lhe prescreve em seu próprio nível. O Sileno invertido não é o símbolo da verdade que Deus nos retirou, é muito mais e muito menos que isso: é o símbolo, a um nível bem chão, das próprias coisas, esta implicação dos contrários que nos impossibilita, talvez para sempre, o único e reto caminho na direção da verdade.
[...]
Nada há que não esteja mergulhado na imediata contradição, nada que não incite o homem a aderir, por vontade própria, a sua própria loucura; comparada com a verdade das essências e de Deus, toda a ordem humana é apenas uma loucura.
E é loucura ainda, nessa ordem, o movimento através do qual se tenta subtrair-se a essa situação para chegar até Deus. No século XVI, mais que em qualquer outra época, a Epístola aos Coríntios assume um prestígio incomparável: "Falo na condição de louco, e o sou mais que ninguém." Loucura é esta renúncia ao mundo; loucura, o abandono total à vontade obscura de Deus; loucura, esta procura cujo fim não se conhece – esses são outros tantos temas caros aos místicos.
É esta mesma experiência que Nicolas de Cues comenta: "Quando o homem abandona o sensível, sua alma torna-se como que demente". No caminho para Deus, mais que nunca o homem se oferece à loucura, e o porto da verdade, para o qual finalmente a graça o empurra, que é, para ele, senão um abismo de desatinos? A sabedoria de Deus, quando é possível perceber seu brilho, não é uma razão ocultada por muito tempo: é uma profundeza sem medida. O segredo aí mantém todas as dimensões do secreto; nela a contradição não cessa de contradizer-se sempre, sob o signo desta contradição maior que quer que o próprio centro da sabedoria seja a vertigem de toda loucura. "Senhor, teu conselho é um abismo profundo demais."[2]
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