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Destaques

✢ LANÇAMENTO: LIVRO "CALVINO, CIÊNCIA E FAKE NEWS"

  Não é sem imensa expectativa e alegria que se empreende a publicação da décima primeira obra de caráter temático calviniano da Série Calvino21 , sob autoria do Rev. J. A. Lucas Guimarães, historiador, teólogo e organizador do Calvino21 , intitulado  CALVINO, CIÊNCIA E FAKE NEWS:  a invenção da oposição calviniana à Ciência moderna na historiografia do século XIX.   Principalmente, ao considerar a singularidade do conteúdo, o nível do conhecimento alcançado e o caráter da percepção do passado envolvida, disponibilizados à leitura, reflexão e intelectualidade, caso o arbítrio do bom senso encontrado, esteja em diálogo com a coerência da boa vontade leitora. Com a convicção da pertinência da presente obra ao estabelecimento da verdade histórica sobre a postura de João Calvino (1509-1564) diante dos ensaios preparatórios no século XVI  ao início da Ciência Moderna ocorrido no século XVII,  representado por Nicolau Copérnico (1473-1543) com sua teoria do movimento da Terra ao redor do Sol

✢ GENEBRA NO TEMPO DE JOÃO CALVINO

 

Rev. Hélio O. Silva *

Genebra e a Confederação Helvética

Falar de Calvino é falar de Genebra, pois somente é possível entender sua história e seu pensamento no contexto de sua influência sobre essa cidade e dela sobre ele. Ele mesmo julgava essa relação embaraçosa e muitas vezes irritante.[1]

Genebra iniciou o século XVI lutando contra a tirania do Duque de Savoy e de seu bispo. A Suíça do século XVI estava dividida em três unidades distintas: a Confederação Helvética (Zurique, Berna, Lucerna, Basiléia e Friburgo – somavam 13 estados), Valais e as Três Ligas Réticas.[2] Genebra figurava como uma cidade-estado independente aliada, mas não ainda membro da Confederação Helvética. Sua população se dividia em dois partidos: Os mammelus (conservadores que apoiavam o domínio francês de Savoy) e os Eidguenots (opositores a Savoy em favor da Confederação Helvética). Eidguenots é uma palavra alemã que significa “confederados”.[3] Savoy perdeu sua autoridade política sobre Genebra em 1526, quando ela entrou em aliança com Berna e Friburgo, antes da Reforma celebrar em Genebra o seu primeiro culto em 1533, sob a direção de Farel. Oficialmente, a cidade aderiu à Reforma em 21/05/1536.

Organização político-administrativa da cidade

— Pequeno Conselho (Petit Conseil)

Era o que realmente governava a cidade. Seus membros eram chamados de “magníficos senhores”, “senhores de Genebra” ou de “síndicos do conselho”.[4] Tinham o poder de aplicar a pena de morte sem direito a apelação acima de sua jurisdição. Seus membros eram escolhidos pelo Conselho dos Duzentos, pelos síndicos que deixavam o cargo e pelos novos síndicos. Com exceção dos síndicos, todos podiam ser reeleitos. Sua complexa forma era constituída assim: 4 síndicos do ano + 4 síndicos do ano anterior (8 membros), 1 tesoureiro + 16 cidadãos eleitos = 25 membros, no total.

Era responsável pelos assuntos rotineiros da cidade, inclusive a defesa, guarda e execução de prisioneiros. A função dos quatro síndicos era respectivamente:

— O Seniour que presidia o Pequeno Conselho.
— O segundo presidia o tesouro e o banco municipal.
— O terceiro presidia a guarda da cidade.
— O quarto supervisionava os 20 distritos de Genebra.[5]

Os quatro primeiros síndicos eram os mais importantes. Um deles era o síndico sênior, quem presidia as reuniões do Pequeno Conselho. Quem ocupasse o cargo de síndico, deveria esperar um intervalo de quatro anos para poder ser eleito para essa função novamente.

Reunia-se três vezes por semana (segundas, terças e sextas-feiras) e sempre que convocado extraordinariamente. Os síndicos se reuniam diariamente. O Pequeno Conselho subdividia a administração da cidade em várias áreas e nomeava seus membros para a administração da mesma por meio de seis Comissões, no tempo de Calvino: judicial, financeira, defesa, eclesiástica, diaconia e adicionais. A área eclesiástica gozava de relativa interdependência.

— Conselho dos Sessenta (Conseil dês Soixante)

Tinha um caráter essencialmente diplomático, interpretado como uma relíquia do século XV e que desapareceu na época de Calvino.

— Conselho dos Duzentos (Conseil dês Deux Cents)

Também conhecido como Grande Conselho. Seus membros eram criteriosamente escolhidos pelos membros do Pequeno Conselho.[6]

— Assembleia Geral ou Conselho Geral (Le Conseil General)

O Conselho Geral era formado por todos os cidadãos genebrinos natos (Citoyens) e aqueles que possuíam título de honra conferido pelo Conselho dos Duzentos. Era o órgão de apelação última. Reunia-se duas ou três vezes por ano: em fevereiro para a eleição dos síndicos ou de algum oficial Senior e em novembro para fixar o preço do milho e do vinho.[7] Contudo, a justiça criminal permanecia aos cuidados do Pequeno Conselho.

— Burgueses (Bourgeois) com posição de honra

O que não afetava necessariamente a questão da cidadania. Esse título era expedido pelo Pequeno Conselho e adquirido por alta quantia em dinheiro. Somente em Genebra havia uma distinção entre Cidadãos e Burgueses quanto a direitos.

— População em Geral

Homens não cidadãos, geralmente estrangeiros (habitants), mulheres e crianças.

Aos pastores era vedada a eleição para qualquer conselho, tampouco aos estrangeiros que vivessem na cidade e que tivessem comprado o título de cidadãos. Somente após 1555, foi-lhes permitido ascender somente ao Conselho dos Duzentos.[8]

População e Estratificação Social

Quando chegou a Genebra em 1538, sua população orbitava em torno de 11 mil habitantes. Entre 1545 e 1560, esse número duplicou. Com o recrudescimento da perseguição ao protestantismo, Genebra recebeu refugiados italianos, espanhóis, alemães, dos Países Baixos, ingleses, escoceses e, principalmente, franceses.[9] Mesmo assim, de 1500 a 1800, Genebra fora a mais populosa de todas as cidades Suíças. Num raio de 200 Km somente Lion (França) e Turim (Itália) eram mais populosas. A cidade em si não inspirava opulência. Seus prédios públicos não eram imponentes e sua Universidade só foi fundada pelo próprio Calvino somente em 1559. Não havia indústrias de manufaturas locais nem mestres artesãos. Até mesmo sua relojoaria, que depois se tornaria famosa, e a imprensa, eram consequência da imigração francesa.[10]

Genebra era divida em 20 distritos (Dizaimes) tendo cada qual o seu supervisor (capitaine) que era responsável por manter a ordem. Os 12 anciãos (presbíteros) mais velhos do Consistório da Igreja de Genebra eram nomeados pelo Pequeno Conselho para supervisionar cada distrito em particular, sob a liderança de um dos síndicos da cidade.[11] Antes de 1535 a cidade possuía sete hospitais religiosos, que o Pequeno Conselho reduziu a apenas um após as desapropriações feitas com a expulsão dos padres e freiras da cidade, a fim de se implementar a reforma protestante. O administrador do hospital era um diácono hospitalário, nomeado pelo Pequeno Conselho dentre os eleitos pela assembleia da igreja.[12] Havia uma pequena casa de detenção inadequada para longos aprisionamentos em caso de crimes graves. Por isso, as penalidades aplicadas eram:

— A pena de morte: Simples (por decapitação) ou com tormentos (mutilação, por queimaduras com fogo brando).
— Exílio: (a) Definitivo (definilus) com confisco de propriedades; e (b) Temporário, como por exemplo “um ano e um dia”, ou mais tempo.
— Açoites: que eram inconvenientes para cavalheiros.
— Pagamento de multas: as multas eram pesadas e difíceis de ser recolhidas.
— Humilhação pública: descrita como a sentença para se pedir clemência a Deus e à justiça. Podia aparecer em público trajando roupas de humilhação, carregando uma tocha e pedindo perdão em lugares específicos da cidade.
— O governo da cidade era avesso às torturas, por isso preferia a pena de morte. As torturas eram permitidas somente em caso de bruxaria.[13]

Econômica e politicamente estava vivendo um importante tempo de transição. Genebra era uma cidade-estado republicana (civitas) que tinha em sua Assembleia Geral o principal órgão de poder político. Sua língua oficial era o francês, o que a aproximava das práticas legais francesas. Mas o idioma falado era o dialeto patoá de Savoy, contendo substancial mistura de alemão.[14] Ao abraçar a reforma a cidade fora colocada sob interdito pelo duque de Savoy causando desabastecimento. O grande afluxo de estrangeiros que se seguiu gerou tempos de escassez em todo o tempo de Calvino.

No início do século XVI, a especulação era desenfreada em função da paixão por negócios e pelo jogo. As transformações sociais muito rápidas ocorridas ao tempo de Calvino levaram a nobreza da cidade à ruína.[15] Na virada de 1500, os profissionais mais numerosos em Genebra eram os tabeliães (notários), açougueiros, alfaiates, costureiros, carpinteiros, fabricantes de tecidos, boticários e bolseiros.

A estratificação social era dividida em:[16]

— Cidadãos (Citoyens): Nascido em Genebra ou batizado por pais nascidos em Genebra.
— Burgueses (Bourgeois): Título adquirido depois de um longo período de residência em Genebra e mediante pagamento de certa quantia determinada pelo Pequeno Conselho. Essa era uma forma de angariar fundos para os cofres públicos em tempos de crise financeira. Em 1547, o Pequeno Conselho se viu obrigado a colocar títulos à venda, o que favoreceu o partido reformador.[17] Nenhum Burguês poderia ser membro do Pequeno Conselho, mas os seus filhos nascidos em Genebra podiam. Todavia um Burguês poderia ser eleito para o Conselho dos Sessenta ou para o Conselho dos Duzentos.
— Habitantes (Habitants): Eram simplesmente os estrangeiros residentes em Genebra. Não tinham permissão para carregar espadas, nem de participar das eleições ou ocupar cargos públicos, exceto o de pastor ou professor (preletor - lecteur) nas escolas, mesmo assim, somente se não houvesse um nativo capaz de ocupar tais funções. Um habitant era passível de expulsão sumária, o que ocorreu com Calvino em 1538. Calvino foi um habitant até 1559, quando recebeu o título de cidadania (Citoyen) como uma gentileza livre de taxas.

Quanto à reforma, a cidade se dividia entre o “partido reformador” e um grupo conhecido como “os libertinos”. Estes últimos eram membros da nobreza que inicialmente apoiaram a reforma, mas que se voltaram contra ela em função de interesses próprios. Eles não tinham um programa de governo definido e haviam desenvolvido uma mentalidade de protesto hostil e exagerada. Suas manifestações contra os regulamentos eram arrogantes e por falta de controle quando em disciplina angariavam para eles aversão em vez de simpatia.[18]

Notas bibliográficas

[1] Allister McGarth, A Vida de João Calvino, p. 99.
[2] Armando A. Silvestre; Calvino e a Resistência ao Estado, p.21.
[3] Ibid, p. 22.
[4] Armando A. Silvestre, Calvino e a Resistência ao Estado, p.29.
[5] Ibid, p. 52.
[6] Ibid, p. 30.
[7] Armando A. Silvestre, Calvino e a Resistência ao Estado, p. 47.
[8] Ibid, p. 31.
[9] Ibid, p. 35. Após a morte de Calvino a população diminui gradativamente: 21.400 [1560]; 16.000 [1570]; 17.300 [1580]; 14.400 [1590]; 15.600 [1600] (Ibid, p. 38).
[10] Ibid, p. 43.
[11] Ibid, p. 52.
[12] Havia dois tipos de diáconos na igreja: Um “hospitalário”, que cuidava do hospital público e quatro “procuradores”, que cuidavam dos pobres.
[13] Armando A. Silvestre, Calvino e a Resistência ao Estado, p.51.
[14] Ibid, p. 47.
[15] Ibid, p. 59.
[16] Ibid, p. 41-42.
[17] Entre 1500 e 1536 foram recebidos 300 novos burgueses a cada ano; entre 1537 e 1547 foram recebidos menos de 20 anualmente (ibid, p. 68); uma clara represália ao partido reformador.
[18] Ronald Wallace, Calvino, Genebra e a Reforma, p. 51.

Autor

* O rev. Hélio da Silva é pastor presbiteriano, com bacharelado em Teologia (SPBC/FAIFA) e mestrado em Teologia Histórica (CPAJ/SP). Artigo original sob título A Genebra de Calvino. Disponível em: http://revhelio.blogspot.com/2011/05/genebra-de-joao-calvino.html. Acesso em: 01/04/2023.

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