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Destaques

✢ LANÇAMENTO: LIVRO "CALVINO, CIÊNCIA E FAKE NEWS"

  Não é sem imensa expectativa e alegria que se empreende a publicação da décima primeira obra de caráter temático calviniano da Série Calvino21 , sob autoria do Rev. J. A. Lucas Guimarães, historiador, teólogo e organizador do Calvino21 , intitulado  CALVINO, CIÊNCIA E FAKE NEWS:  a invenção da oposição calviniana à Ciência moderna na historiografia do século XIX.   Principalmente, ao considerar a singularidade do conteúdo, o nível do conhecimento alcançado e o caráter da percepção do passado envolvida, disponibilizados à leitura, reflexão e intelectualidade, caso o arbítrio do bom senso encontrado, esteja em diálogo com a coerência da boa vontade leitora. Com a convicção da pertinência da presente obra ao estabelecimento da verdade histórica sobre a postura de João Calvino (1509-1564) diante dos ensaios preparatórios no século XVI  ao início da Ciência Moderna ocorrido no século XVII,  representado por Nicolau Copérnico (1473-1543) com sua teoria do movimento da Terra ao redor do Sol

✢ RESPONSABILIDADE DE CALVINO NA MORTE DE SERVETO

Daniel Pisoni *

No 450º aniversário da execução de [Miguel] Serveto, em uma fogueira erguida no morro de Champel, estamos em um momento propício para observar à distância, com cuidado e sem paixão, um dos fatos mais polêmicos e manipulados da história da Igreja. Elaboro essas considerações como uma contribuição a busca por novas formas de abordar um momento que envolveu, em si mesmo, homens fervorosos, quanto religiosos, polêmicos e políticos, em um cenário tão especial, como era a cidade de Genebra do século XVI.

Quando se trata do tema da execução de [Miguel] Serveto, precipitam-se em opiniões que se tornaram senso comum, ainda que não rigorosamente verdadeiras. Em 27 de outubro de 1553, Miguel Serveto, recusando-se até o último momento a renunciar às suas convicções religiosas, foi queimado junto aos seus livros, cumprindo a sentença emitida pelo Conselho Menor de Genebra. A intervenção de [João] Calvino nesse processo contra Serveto sempre foi controversa e muitas vezes distorcida por diferentes interesses. Às vezes, como uma forma indireta de refutação dos ensinamentos bíblicos de Calvino e, em outros momentos, por preconceitos e acrimonia pessoal. Em todos os casos, a morte de Serveto fornece o pano de fundo e a desculpa. No entanto, mesmo naqueles em que um preconceito solidamente estabelecido não prevalece, subjaz a ideia da culpa de Calvino: seja por comissão ou por omissão – uma conclusão precipitada, resultante da falta de uma abordagem histórica, que situe os personagens e o contexto devidamente e permita ter uma imagem mais completa do fato em si.

Não pretendemos, contudo, que a conclusão que será elaborada seja julgada como definitiva e inquestionável, o que seria pretensioso, a partir dessas anotações propriamente incompletas. Porém, que os elementos que proporcionem uma visão tão desapaixonada quanto possível, introduzam outras perspectivas. Investigar a realidade dos fatos nos livra de histórias sem fundamento, mas com bastante lendas que foram sendo construídas quase sem profundidade ou certezas, mas que estão nelas. São meias-verdades que habilmente empunhadas parecem satisfazer nosso intelecto e assumem a aparência de sentenças inquestionáveis para, finalmente, se elevar como absoluta. Fanatismo, preconceito e parcialidade se combinam para alimentar histórias, pouco históricas. A questão da execução de Serveto se enquadra nesse quadro.

Miguel Serveto: o homem

Serveto não era alguém que timidamente procurou expressar alguma ideia divergente do Cristianismo. Pelo contrário, ele era um expoente antitrinitário convencido, que escreveu obras negando a Trindade, como Trinitatis Erroribus (1531), aos vinte anos, na qual defendia uma heresia muito semelhante à sabeliana, e Christianismi Restitutio (1553), onde ele se aproximou do panteísmo. A. H. Newman diz: Foi o zelo fanático com que Serveto insistiu em seus dogmas, como se fossem os únicos dogmas cristãos, e a denúncia de seus adversários como absurdos e destruidores do cristianismo, que o fez ser considerado um petulante herege e digno de chamas.[1]

Ele regou-se do platonismo e, finalmente, mergulhou-se no panteísmo, fingindo encontrar Deus em toda a matéria, com base em uma comunicação substancial da Divindade com todas as coisas. Nesta linha de pensamento, tudo seria emanação do divino. Ainda jovem, ele havia tido a oportunidade de estudar textos judaicos e muçulmanos, o que foi formando nele a ideia de que para que a união das três grandes religiões fosse possível no nível dogmático, a concepção cristã de Jesus Cristo como pessoa existente antes da encarnação deveria ser descartada. Em seu pensamento, Jesus Cristo era simplesmente um homem, a quem Deus havia soprado a sabedoria divina. O Espírito Santo não era distinto de Deus, mas se confundia com ele e não existia fora do Espírito de Deus, que habita em nós. Desta forma, o ser humano participava substancialmente de Deus. Também não encontrou nas Escrituras Sagradas uma base para a doutrina da Trindade. Reconheceu o Deus Criador como Deus, e o Filho e o Espírito Santo apenas como expressões de uma ação divina, mas sem reconhecer sua divindade, que é comumente chamada de monarquia (heresia já conhecida no século III, com Praxeas e Noetum): “A Trindade é um monstro de três cabeças”, disse ele.[2] Finalmente, ele argumentou que os dois grandes obstáculos à disseminação do cristianismo consistiam na doutrina da Trindade e no batismo das crianças.

Ele tinha uma propensão para pensamentos originais, que valeu a pena na medicina, assim como a descoberta da circulação pulmonar de sangue, que lhe veio aparentemente por raciocínio. De uma inteligência superior, ele possuía uma personalidade às vezes discordante, como é demonstrado no momento do julgamento em Genebra. Ele era dialeticamente intolerante e pode ter influenciado sua vida o fato de ter sido castrado aos cinco anos de idade. Violento e sem tato, como pode ser visto a partir dos conflitos permanentes, em que estaria envolvido ao longo de sua vida, ele era religioso e supersticioso, mas não se pode dizer que era cristão no sentido bíblico da palavra.

Foi curiosamente a Inquisição Católica que começou a persegui-lo queimando seus livros em Viena, onde ele era o médico do arcebispo, depois de fugir da França. É falso que Calvino denunciou Serveto à Inquisição Católica Romana na França, depois que ele lhe enviou uma cópia de sua obra Christianismi Restitutio. Não foi Calvino que o denunciou à Inquisição, mas um amigo do reformador indiretamente, mais por imprudência do que desejo premeditado. Mas Calvino não sabia disso, embora mais tarde o casaco de ter sido seu acusador seria pendurado nele.

É em uma carta privada enviada aos seus parentes católicos romanos que permaneceram em Viena, que Guilherme de Trie (um amigo próximo do reformador, que foi acusado por eles de ser um herege protestante), responde que são eles que acolhem um herege entre eles, que nega a Trindade e divindade de Jesus Cristo, em referência direta a Serveto e seu trabalho, enquanto ao mesmo tempo executaram cinco jovens estudantes protestantes pelo crime de pregar o verdadeiro evangelho, fato ocorrido no mesmo ano em Lyon. Dado o estado público que esta acusação toma, sendo do conhecimento das autoridades eclesiásticas de Viena e do pedido de evidência de tal acusação, é que De Trie fornece algumas peças da troca epistolar entre Calvino e Serveto.

Como se pode inferir, não houve qualquer tipo de conivência com Serveto, para pensar que ele de alguma forma o traiu e isso só teve a ver com sua detenção em Viena, muito indiretamente. Calvino não sabia, no momento da entrega dessas cartas, que elas acabariam nas mãos da Inquisição Católica como prova contra Serveto. Ele mesmo, mais tarde, declara que não tomou parte nesse fato, além do conhecido. Vale ressaltar, também, que durante o tempo de sua correspondência, entre os anos de 1546-1547, Calvino não o denunciou à Inquisição. Portanto, não há razão para pensar que ele mudou repentinamente seu curso e o fez posterioriEm uma carta ao seu amigo Farel, escreve: “Serveto acaba de me enviar, junto com sua carta, um extenso volume de seus delírios. Se eu concordar, ele virá aqui. Mas não direi uma palavra para que ele venha.”[3] É claro que, diante da possibilidade de capturá-lo e o processar em Genebra, não será Calvino quem o iludirá a vir. Atitude diferente da realizada pela Inquisição Espanhola, que já havia ordenado sua prisão em qualquer lugar da Europa que fosse encontrado e encaminhado à Espanha, a qualquer custo: Prometa-lhe favores, minta para ele, ordene-o, faça qualquer coisa para trazer Serveto a algum lugar onde possamos pegá-lo.[4] Assim se manifestava a ordem inquisitorial. Nem mesmo os mais ferrenhos defensores de Serveto ou os detratores de Calvino conseguem explicar o motivo que o levou a passar por Genebra, quando sua intenção era ir para Nápoles, visto que ele, na França, possivelmente, a pedido aos seus contatos com os líderes libertinos, como Perrin, tivesse se inteirado da situação reinante em Genebra. Não se deve esquecer que os impressores de Lyon de Christianissima Restitutio, Arnoullet e Guéroult, mantinham contato com líderes perrinistas. É curioso notar que durante o julgamento em Genebra, Serveto afirma que mal conhece o impressor Baltasar Arnoullet. No entanto mente, pois o conhecia a bastante tempo, por causa de outras impressões que lhe havia feito. A negação do vínculo por parte de Serveto, talvez tenha sido para não o delatar, bem como, ao mesmo tempo, negar qualquer relação com o partido de Perrin. Principalmente, porque ele sabia que a cidade de Genebra e seu Conselho não eram favoráveis a Calvino, para lá se encaminha com a intenção de se tornar forte naquela praça, convencido de que o conselho liberal da cidade iria apoiá-lo em detrimento de Calvino, como escreveu o reformador Wolfgang Musculus.

Ele conhecia Calvino, porque, como dissemos, eles tiveram contatos epistolares por anos antes, contatos que acabaram fartos do reformador por causa do inédito de suas ideias, quando ele lhe enviou uma cópia da Institutio e Serveto devolveu-lhe com comentários nas margens e uma carta ofensiva. Esses contatos foram iniciados a mando de um editor de Lyon, que se recusa a imprimir os escritos de Serveto, sem a aprovação de Calvino. Tentando tirar vantagem da fraqueza de Calvino em Genebra, paradoxalmente, foi Serveto quem acusaria João Calvino de ser um herege, pediria a pena de morte para ele e exigiria que todos os bens do reformador fossem lhes dado, como compensação pelos danos morais sofridos.

Após a prisão de Serveto, as autoridades de Genebra escreveram a cidade de Viena solicitando informações sobre o prisioneiro. As autoridades vienenses imediatamente exigem sua extradição. É nesse momento, que o Conselho da Cidade de Genebra lhe oferece duas alternativas: ser devolvido a Viena ou ficar em Genebra e enfrentar as acusações contra ele. Serveto opta por permanecer em Genebra e ser julgado pelo Conselho genebrino. Essa comunicação pode ter influenciado significativamente o tribunal genebrino, que não estava de forma alguma disposto a ser rotulado de complacente, dado ao precedente da condenação final, no mesmo ponto, por uma corte católica romana.

Serveto não parece atentar, até quase a própria execução, a gravidade de sua situação e até o final esperava uma reviravolta em sua situação através da oposição a Calvino no Conselho Menor. Essa atitude, segundo a afirmação de Guizot, pode ter sido encorajada pela sua confiança de que o partido libertino o defenderia. Durante o processo, ele se defendeu, mostrando sinais de grande acuidade. No entanto, ao mesmo tempo, ele proferiu ameaças estranhas e violentas. Um escritor como Dyer, que está longe de justificar Calvino, aponta que suas respostas às acusações de heresia de Calvino são muito insolentes, ao ponto de parecerem ser de alguém que está chateado com razão. Desafiador e totalmente seguro de si mesmo, ele tentou liderar a defesa como se Calvino fosse o acusado, chamando-o de mentiroso, perverso, assassino, macaco ridículo...”. Em uma carta ao Conselho Menor, ele alegou o seguinte: Portanto, meus senhores, peço que meu falso acusador (Calvino) seja punido... que sua propriedade seja dada a mim como recompensa pelo inconveniente causado, e que ele seja mantido na prisão até que o julgamento decida sua morte ou a minha, ou alguma outra punição...[5] Van Halsema chama a atenção para o fato de que Serveto considerou a possibilidade da pena de morte como um veredito, embora não assumindo que cairia sobre ele.

João Calvino: os limites de sua responsabilidade

John Neill disse: "Calvino foi tão maquinadamente caluniado que muitos à margem do mundo culto pensam nele, em primeiro lugar, com um certo horror."[6] O relato da história de Genebra nos tempo do julgamento e execução de Serveto nos informa que João Calvino não era um ditador nela, muito menos um "Papa", mas que apenas no final de sua vida é que lhe foi concedido cidadania genebrina, com plenos direitos. Até então, todavia, ele era apenas um estrangeiro refugiado legal, sem o direito de votar ou de portar armas, que poderia ser um pastor ou professor, se um cidadão genebrino qualificado para ocupar tal posição não fosse encontrado. Mas que na época dos eventos gerados por Serveto não tinha controle sobre os Conselhos Municipais. Além disso, o Conselho Menor da cidade não o tinha em simpatia, a ponto de os magistrados o dispensarem no início do processo contra Serveto. E foi este Conselho que elaborou a acusação. Calvino era, com o passar do tempo, uma pessoa respeitada em um nível moral e espiritual, mas ele não tinha poder real no momento do julgamento contra Serveto.

É interessante notar que Calvino era um homem de sensibilidade e compaixão, o que pode ser visto em sua correspondência pessoal e que tinha um profundo senso de compromisso com aqueles que estavam em necessidade, tanto físico quanto espiritual. Epistolografista por natureza, chegaram aos nossos dias cerca de quatro mil cartas escritas pessoalmente, com temas que vão desde o pensamento teológico mais puro até outros de natureza íntima. A partir do estudo delas surge um reformador que abre seu coração mostrando os sentimentos que o sobrecarregam, suas preocupações, seus despertares e ilusões, seu incansável encorajamento e conforto para seus companheiros servos. Alguns acreditam que se Calvino não tivesse feito nada além de simplesmente escrever cartas, a profundidade e riqueza delas o colocariam no lugar preponderante na história da Igreja. O livro "The Humannes of John Calvin", de Richard Stauffer, apresenta aspectos geralmente desconhecidos sobre o reformador, quando se trata de sofrimento humano. É provado por meio de uma carta pessoal ao seu amigo Farel que, fiel ao seu sentimento, Calvino e outros pastores tentaram evitar a sentença de morte na fogueira, mudando-a para uma mais misericordiosa como a executada por espada. Contudo, eles foram rejeitados por um Conselho de Genebra que queria demonstrar sua independência de Calvino e a execução nos termos que eles organizaram foi uma boa ocasião. Com grande maestria José Grau aponta que paradoxalmente seus inimigos o acusam de ser culpado de uma fogueira à qual ele se opôs. Isso deixa claro que não havia capacidade de decisão ou mesmo consideração na pessoa de Calvino por parte do órgão civil. Se tivesse tido, a história final de Serveto teria sido diferente. No entanto, a falácia do mito sobre este fato incrimina Calvino, como o principal instigador e autor desta execução. Depois que a sentença foi conhecida, Serveto pediu uma reunião com Calvino, onde ele se desculpou e retribuiu assegurando-lhe que ele nunca tinha guardado um rancor pessoal contra ele.

A ideia de um ditador Calvino em Genebra de seu tempo é insustentável. Aqui estão alguns exemplos. Ele tinha muitos inimigos que o odiavam e o ridicularizavam de maneiras difíceis de suportar. Não podia sair à rua sem ser ridicularizado com expressões como: “— Eu prefiro ouvir três cachorros latindo do que Calvino pregar.” E: “— Você sabe? No inferno há apenas dois demônios e um deles vai ali (para Calvino).” Algumas crianças em seu caminho gritaram Caim, Caim” pelas costas. E mais de um cachorro naqueles dias respondeu ao nome Calvino (Stickelberger, John Calvin). Em uma carta a Farel, o reformador escreve: Nossos magistrados chegaram a tal ponto de sua loucura, que  questionam tudo o que eu digo: tanto que se eu digo que há luz ao meio-dia, é nesse momento em que eles começam a desconfiar. [7] E isso acontece pouco antes da sentença contra Serveto. Mesmo autores que não podem ser suspeitos de conluio com o reformador de Genebra reconhecem que, quando Calvino começou a mexer com a vida liderada pelos ricos e poderosos da cidade, a resistência contra ele aumentou acentuadamente.

Aqueles que eram seus adversários tomaram o poder do Conselho Municipal em 1549 e não estavam dispostos a tolerar a censura sobre seus modos de vida, nem uma política que continuaria a facilitar a chegada de refugiados protestantes de toda a Europa, que foram perseguidos pela Inquisição Católica. Pelo contrário, eles queriam uma política mais genevanO conflito, finalmente, eclodiu entre o Consistório de pastores e dois proeminentes da cidade, como Francisco Favre e seu genro Ami Perrin. Também não devemos ignorar o caso de Berthelier, líder do partido libertino, que do Conselho Menor (onde Serveto é julgado) confronta o Consistório e desafia Calvino, depois que esse corpo o excomungou por agredir um pastor pertencente a ele.

Calvino acusou Serveto de heresia, e demonstrou seu falso ensino apenas no campo teológico, desmontando os argumentos do espanhol durante o processo: Pelo tempo em que Serveto foi condenado por heresia eu não pronunciei uma palavra sobre sua tristeza... Estou ansioso para saber de que fato sou acusado de crueldade. Não sei a qual ele está se referindo, a menos que seja com referência à morte de seu grande mestre Serveto. Mas que eu mesmo considero que ele não deveria ter sido executado, seus juízes são testemunhas, dois dos quais naquela época eram seus leais e defensores favoritos.”[8] Merlé D'Aubigné ressalta em seu trabalho que curiosamente foi Calvino que assumiu o papel de tentar mitigar a forma de execução da pena, para finalmente ser acusado de uma pena com a qual ele não concordava. A responsabilidade final pela forma de morte dada a Serveto cabe ao Conselho da Cidade, não a Calvino. Aqueles que afirmam que Calvino tinha medo de um médico que lidava com hebraico fluentemente e tinha conhecimento da teologia, que poderia abalar seu governo em Genebra, e que essa foi a razão pela qual ele defendeu sua execução, ignoram o fato de que este mesmo Serveto já havia sido condenado e queimado em efígie em Viena pela Inquisição Romana.

O cenário: razões históricas para o processo e execução de Serveto

Esse processo poderia ser visto como um evento único, isolado e pontual na história do século XVI? Genebra está imersa em seu tempo, um tempo em que se acreditava ser heresia que almas ameaçadas tinham que ser exterminadas sem outras avaliações; a Inquisição Católica Romana pode muito bem dar amplas evidências disso em milhares e milhares de casos. A igreja não havia superado sem grande dificuldade as heresias arianas nos séculos IV e V, e ainda permaneceu sensível em questões fundamentais como a Trindade, a deidade de Jesus Cristo, e o caráter pessoal do Espírito Santo. Qualquer ideia que implicasse a não aceitação do Credo de Niceno implicava ser perseguida desde a época do Imperador Teodósio, que era o cenário de Genebra e da Europa Ocidental em meados do século XVI.[9] Biéler expressa em seu trabalho sobre o pensamento econômico e social de Calvino que tanto para o romanismo emanando do papado quanto para os protestantes, no século XVI há apenas uma verdade religiosa pela qual cada um é obrigado a lutar e a recorrer, se necessário, à força. O processo foi civilizado, instruído e dirigido pelo Conselho Menor da cidade do Lago Genebra de acordo com as leis vigentes, e este órgão civil era o único que tinha o poder de penalizar os criminosos. E Calvino não era um magistrado.

A condenação de Serveto como herege deu ao Conselho de Genebra um apoio fundamental, pois mostrou que eles perseguiram e condenaram heresias anticristãs e em sua autoridade poderiam se opor a Calvino, que alguns deles tinham como inimigo. As ações de Serveto tinham um significado sedicioso, que é o que o tribunal tem que julgar, pois em uma sociedade em que a divisão entre Estado e Igreja ainda não estava clara, sua tentativa de desestabilizar a igreja foi uma tentativa de derrubar o governo de Genebra; se as atas forem analisadas, conclui-se que o processo rapidamente assumiu uma tonalidade política e social. Serveto é acusado de sedição atacando as bases doutrinárias fundamentais de uma sociedade cristã como Genebra, e de tentar minar essas bases a fim de pôr fim à ordem vigente. O problema fundamental tornou-se de caráter social, as consequências da degradação espiritual que levou à anarquia, e à destruição do estado de fé, da regra moral e da ordem social.[10] Sim, uma certa reminiscência romana pode ser vista na união da paz social com razões eclesiásticas, mas estamos no início do processo que levará decisivamente à separação ou independência da Igreja e do Estado. O ato de eliminação física dos hereges foi baseado em uma interpretação contextualizada das escrituras encontradas no Antigo Testamento em Levítico 24.16 ("E quem blasfeme o nome do Senhor deve ser morto; toda a congregação vai apedrejá-lo; então o estranho como o natural, se ele blasfeme o Nome, deixá-lo morrer. Este foi o erro da época. Endossado pelo Código Justiniano, o direito civil em vigor, pelo crime de negar uma doutrina fundamental do cristianismo, como a Trindade, aplicou pena capital.

A sentença de execução de Serveto foi completamente aprovada pelos líderes da Reforma, por isso descobrimos: Beza, Melancthon, Bucer, Farel, Bullinger em total concordância com a sentença emitida no teor de suas respostas à consulta feita pelo conselho de Genebra às diferentes cidades suíças: Zurique, a cidade de Zwínglio: "Nenhuma gravidade é muito grande para penalizar tal ofensa..."Schaffhausen: "Pare com esse demônio, caso contrário suas blasfêmias acabarão com os cristãos..."; e Basileia: "Se ele persistir em sua loucura, use o poder com o qual você é dotado por Deus para evitar pela força contra qualquer insulto à igreja de Cristo." Melancton para Calvino em uma carta: "Eu li o seu livro onde você claramente rejeita as horríveis blasfêmias de Serveto...". Outro: "A Igreja lhe deve gratidão e a posteridade deve isso a você. Eu perfeitamente afirmo sua opinião e também afirmo que os magistrados tinham o direito de punir este homem blasfemo em um tribunal comum."[11] É bem possível que elementos contrários a Calvino no Conselho tenham promovido esta consulta, na esperança de que uma recomendação de sanção menor, como foi no caso de Bolsec (banimento), seria interpretada como uma derrota para Calvino. No entanto, a força não deixou brechas: a decisão do tribunal foi unânime. Fica claro a partir desses testemunhos que a opinião pública e a de outros reformadores aprovaram tal frase, tão verdadeira quanto o quão chocante é para nós hoje através da ideia formal (não prática) de tolerância no século XXI.

É, portanto, pelo menos questionável, que você queira personalizar Calvino com a intolerância reinante no século XVI que não foi um tempo benevolente, nem tolerante à heresia em qualquer lugar da Europa, como atestado pelas crônicas da época, e como amplas amostras dariam à Inquisição Católica Espanhola por um longo tempo. O próprio Tomás de Aquino apoia explicitamente a queima de hereges dizendo: "Se o herege pertencia à igreja, abandonar toda a ideia de conversão, prover a salvação dos outros separando-o da igreja pela sentença de excomunhão, e deixá-lo nas mãos de uma corte secular para ser exterminado do mundo pela morte" (Summa Teologia). A heresia foi considerada pior do que a morte, na medida em que a morte só destruiu o corpo, mas na heresia perdeu-se a alma para sempre.

Conclusão

Hoje, todos nós admitimos que a execução de Serveto foi um erro lamentável. A liberdade de consciência a que toda pessoa tem direito nunca pode ser aviltada. No entanto, o que aconteceu em Genebra em 1553 estava em desacordo com a mensagem do Evangelho. Há tanta verdade nisso como quanto a questão do julgamento e execução de Serveto pelo Conselho Menor de Genebra foi uma questão altamente complexa por causa das inúmeras arestas envolvidas. E entre elas, razões políticas e religiosas, lutas entre facções e inimizades pessoais são misturadas. Seria interessante perguntar: Qual teria sido a reação dos anticalvinistas a uma sentença menor contra Serveto? Isso teria sido visto como uma fraqueza doutrinária na acusação realizada pelo teólogo reformado? Como anteriormente o católico Peter Caroli havia feito acusações de arianismo contra Calvino, é fácil imaginar o que significaria uma censura leve e tolerante contra Serveto. O romanismo papista não teria acusado o protestantismo de conivência com doutrinas que minam os fundamentos do cristianismo? Anos antes, Aleander escreveu: "Esses hereges na Alemanha devem puni-lo, se é que são tão cristãos e evangélicos como dizem ser, bem como defensores da fé, porque ele (Serveto) é tão oposição a eles em sua profissão de fé como dos católicos." [12]

Abordar os eventos ocorridos no século XVI com o vidro da tolerância do século XXI é pelo menos anacrônico. Os fatos e razões em torno da execução de Serveto não escapam de seu século, mas são prisioneiros e testemunhas de seu tempo. Não é isso o endosso deles, por isso não devemos silenciá-los. Porque João Calvino não precisava deles para tomar seu lugar na história, todavia, por certo, nem deve permitir-se distorcer a história a seu bel-prazer. Também não pode ser válido aplicar princípios do direito penal moderno a um processo de 450 anos atrás, a fim de encontrar erros de procedimento legal, já que é impossível remover a execução de Miguel Serveto de seu contexto, que nas palavras de um historiador agnóstico como Crouzet, é a da luta final contra os perrinistas.

Aqueles que atacam João Calvino através deste infeliz episódio, acreditando que com ele refutam sua teologia, estão muito enganados. Porque não foi Calvino ou a teologia reformada que condenou Serveto, mas as circunstâncias e o ambiente político-social do momento. H. Bainton, em "Hunted Heretic", aponta que com suas ideias e pontos de vista o médico aragonês teria sido varrido ou queimado em qualquer país da Europa. Mesmo no microcosmo de Genebra, o clima está constantemente fervendo, há uma série de expressões heréticas contínuas, enquanto o confronto sobre a excomunhão de Berthelier, a aparição em Genebra do livro de Castelio etc. está ocorrendo. Nada disso pode ser ignorado, nem removido do contexto no tempo e espaço onde ocorreu a condenação e execução de Serveto.

Calvino não está no altar dos protestantes. Ele era apenas mais um pecador: um pecador que participou do julgamento contra Serveto e que, na pior das hipóteses, não tentou detê-lo, mas que também não teria o poder de fazê-lo. Sua parcela de culpa é a do espírito de seu século, como o Dr. Emile Doumerge afirma com razão. Um homem como Calvino, que foi um precursor na separação de Estado e Igreja e que levantou sua voz para proclamar a verdade de Deus, mesmo em risco de sua própria vida, talvez neste fato só possa ser culpado por não ter estado à frente de seu tempo. O monumento, a Serveto, erguido na mesma colina de Champel (Genebra) por cem anos, atesta claramente que aqueles que concedem a João Calvin o reconhecimento de sua contribuição monumental à teologia cristã, não aprovam de forma alguma o uso da violência como meio de defender a pureza da ortodoxia cristã. Aqueles perseguidos, condenados e assassinados nas estacas da Inquisição Católica Espanhola ou da razão revolucionária e progressista ainda esperam gestos semelhantes.

Finalmente, esses fatos nos convidam a considerar: o contexto em que ocorreu o julgamento, sentença e execução de Miguel Serveto; a pressão popular pública que exigia condenação contra heresia e blasfêmia manifesto; o poder nulo ou controle que Calvino tinha sobre o Conselho Menor que foi quem julgou; o caráter e a personalidade do acusado em sua atitude perante o tribunal; as razões obscuras mas suspeitas pelas quais ele tinha ido para Genebra; a luta política em que o palco está envolvido; que no passado Calvino havia apelado para sentenças mais leves, a resposta das outras cidades suíças que são consultadas; e, finalmente, a que Serveto já havia sido condenado por essas mesmas acusações por um tribunal inquisitorial católico romano. Tudo isso pesa muito na avaliação e interpretação da história de Serveto dos últimos dias, que muito tem haver com as acusações de intolerância feitas contra João Calvino. Serveto foi sentenciado por um tribunal civil por unanimidade e de acordo com as leis vigentes em seu lugar e em seu tempo. Uma sentença aprovada amplamente também em outras cidades e até repetida como no caso da Vienne católico romano.

Considerando essas anotações, seria uma simplificação absurda e falta de objetividade histórica falar da execução de Serveto por Calvino. Os fatos desmentem isso. E os fatos são terrivelmente teimosos.

Notas:

[1] A. H. Newman. «A Manual of Church History». Vol II. p.195.
[2] Punto IX. «The Complaint of Nicholas de la Fontaine against Servetus 14 August, 1553»
[3] Van Haselma. «Así fue Calvino» pag. 219. 2ª Ed. 1998
[4] Op. cit., p. 218.
[5] Op. cit., p. 227.
[6] Lester DeKoster. Nueva Reforma Nº 30. «Juan Calvino; Pensador y hombre de acción.»
[7] Rahul Nand. «The Price of freedom.» cit. Wendel 92.
[8] Loraine Boettner. «The Truth About Calvin and Servetus.» – Calvin´s calvinism p. 348.
[9] José Grau. «Servet, Calvino y la intolerancia». Revista Evangélica de Teología . «Aletheia» Nº 21.
[10] Op. cit., p. 25.
[11] Dr. Jack L. Arnold. «John Calvin-From Second Reform. In Geneva to death (1541-1564)»
Reformation Men and Theology. Vol. 1, Num. 8, 1999.
[12] Hoogstra Jacob. «Juan Calvino, Profeta contemporáneo». Cap. 3. p. 50.
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* Daniel Pisoni é historiador. Artigo disponível em: https://elasnadebalaam.wordpress.com/2015/10/27/la-responsabilidad-de-calvino-en-la-muerte-de-servet/.

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