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✢ CALVINO: ESCRITOR E ESCRITOS
Introdução
Dos 101 volumes do Corpus Reformatorum (série que reúne as composições literárias dos principais reformadores do século XVI), os escritos de João Calvino totalizam 59 obras volumosas. Martyn Lloyd-Jones, prolífico escritor calvinista, disse acerca do trabalho literário de Calvino: “Como um só homem pôde fazer tudo isso, e em acréscimo pregar com regularidade, é-nos espantoso contemplar.”[1] O espanto é ainda maior quando se descobre que João Calvino, além de muito atarefado, tinha uma saúde física bastante fragilizada. Segundo Wilson Castro Ferreira, Calvino:
"...escreveu doente, escreveu em meio às mais acirradas lutas, escreveu no leito, ditando aos seus secretários, escreveu até altas horas da noite, mesmo enfermo e, segundo testemunho do seu primeiro biógrafo, Theodoro Beza, escreveu até oito horas antes da sua morte."[2]
João Calvino morreu pouco antes de completar cinquenta e cinco anos de vida.
1. Os Primeiros Escritos de CalvinoEscrever era uma vocação que se sobressaia em João Calvino. Benjamin Warfield declara: “O que vemos em Calvino fundamentalmente é o ‘homem de letras’ [...]. Ele era por natureza, por dons, por educação – por inata predileção, por qualidades adquiridas igualmente – um ‘homem de letras’.”[3] João Calvino nasceu para escrever e escreveu desde cedo. Diferente do que muitos têm afirmado, o comentário do livro De Clementia (uma exposição à obra de Sêneca acerca da virtude da clemência) não foi o primeiro escrito dele a ser publicado. O primeiro escrito de Calvino impresso foi o prefácio que ele compôs para seu amigo Nicolás Duchemin, Antapologia (1531), uma defesa de Pedro de l’Etoile, famoso professor francês de jurisprudência.[4]
A obra sobre o De Clementia de Sêneca, o filósofo romano que foi contemporâneo do apóstolo Paulo, seria o primeiro livro impresso de João Calvino, publicado em 1532, quando ainda não havia completado 23 anos de idade. O comentário do livro de Sêneca mostra que, até então, a Bíblia é um livro fechado para Calvino. O futuro reformador não alimentava nessa época interesse por questões religiosas. Seu primeiro livro visava o interesse literário mais do que apologético, ético mais do que religioso.[5] Lamentavelmente o livro teve pouca aceitação, dando grande prejuízo financeiro ao seu autor.[6]
Em 1533, logo após sua conversão,[7] João Calvino redigiu um discurso na reabertura da Universidade de Paris, atacando a teologia escolástica da Igreja Católica, sendo perseguido por isso. No ano seguinte (1534), Calvino escreveu um tratado de nome Psychopannychia,[8] em que rebate os erros dos anabatistas, os quais afirmavam que as almas dos mortos ficam dormindo até o dia do Juízo Final. O discurso da Universidade de Paris e o tratado contra os anabatistas são uma demonstração prévia do que seria sua obra principal em seu caráter apologético – As Institutas.[9]
2. As Institutas de CalvinoAs Institutas, ou Tratado da Religião Cristã, é a magnum opus de João Calvino. Sua primeira edição foi publicada em 1536, o ano seguinte após ser escrita. Começou como um pequeno livro de 516 páginas e apenas seis capítulos. Os quatro primeiros capítulos tratavam sobre a Lei, o Credo Apostólico, a Oração do Pai Nosso e os Sacramentos. Os dois últimos capítulos resumiam a posição protestante com respeito aos sacramentos romanos, a liberdade cristã, o poder eclesiástico e a administração política. Justo Gonzalez observa:
"Após a edição de 1536, em latim, surgiu em Estrasburgo a edição de 1539,[10] no mesmo idioma. Em 1541, Calvino publicou em Genebra a primeira edição francesa, que é uma obra mestra da literatura nesse idioma. A partir de então, as edições surgiram em pares, uma latina seguida de sua versão francesa, como segue: 1543 e 1545, 1550 e 1551, 1559 e 1560. Visto que as edições latina e francesa de 1559 e 1560 foram as últimas produzidas durante a vida de Calvino, são elas as que nos dão o texto definitivo das Institutas."[11]
O texto definitivo, que na edição de 1536 eram seis capítulos, transformou-se em quatro livros com um total de oitenta capítulos. Foram nove edições de próprio punho, escritas em latim e francês (línguas que João Calvino dominava como poucos), numa época em que se usavam luz de vela e lampião, pena e tinteiro.[12]
Em linhas gerais, o primeiro livro das Institutas trata de Deus e sua revelação, da criação e da natureza do ser humano, porém, sem incluir a queda e a salvação. O segundo livro trata de Deus como redentor e o modo como se nos dá a conhecer primeiramente no Antigo Testamento, e depois em Jesus Cristo. O terceiro livro trata sobre como, pelo Espírito Santo, podemos participar da graça de Jesus Cristo e dos frutos que ele produz. O quarto livro trata da igreja e os sacramentos. Nas Institutas percebe-se claramente o conhecimento profundo de João Calvino, não só das Escrituras, mas também dos clássicos escritores pagãos e cristãos (particularmente santo Agostinho), e das controvérsias teológicas do século XVI.[13] O pensamento de Calvino nas Institutas ficaria, ainda, fortemente explícito em seus comentários bíblicos.
3. Os Comentários Bíblicos de CalvinoOs comentários bíblicos de João Calvino são um complemento importante das Institutas, pois elas estão estritamente relacionadas não somente com as Escrituras, mas também com os comentários de Calvino sobre as Escrituras, fruto de suas preleções e homilias. Ele escreveu comentários de 24 livros do Antigo Testamento. E do Novo Testamento somente não comentou a 2ª e a 3ª epístolas de João e o Apocalipse. A editora Baker Book House reuniu os comentários de Calvino em 22 volumes, que totalizam mais de 11.000 páginas!
O primeiro comentário bíblico de João Calvino foi sobre a epístola aos Romanos, preparado quando o reformador ainda se encontrava em Estrasburgo, em 1539. O livro está dedicado a Simão Grinée, reformador em Basiléia e mestre de Calvino no grego e teologia. Os últimos comentários escritos por João Calvino foram os de Josué e Ezequiel, que compreende apenas os vinte primeiros capítulos. A edição escocesa de 1850 traz a seguinte nota ao Comentário de Ezequiel:
"Depois de terminar esta última preleção (sobre o cap. 20), o ilustre João Calvino – o Teólogo – que havia estado previamente enfermo, começou a sentir-se tão fraco, que foi compelido a buscar o leito e não pôde mais prosseguir na explicação de Ezequiel. Esta foi a razão de parar no cap. 20º e não terminar uma obra tão auspiciosamente começada."[14]
O professor Tiago Arminius (1560-1609) recomendava aos seus alunos a leitura dos comentários de Calvino porque, segundo Arminius, não havia melhores.[15] Pode-se dizer, sem exagero algum, que a interpretação da Bíblia divide-se em antes e depois de João Calvino. Segundo Philip Hughes, os comentários de Calvino representam uma surpreendente e completa ruptura com o método alegórico retorcido e complicado de exposição dos eruditos escolásticos.[16] João Calvino interpretou a Escritura de acordo com sua ideia principal, direta e de sentido natural.[17]
4. Os Sermões e as Cartas de CalvinoQuanto aos sermões de João Calvino, Lessa destaca: “No apêndice ao Comentário de Josué, que temos presente, edição escocesa de H. Beveridge, há também uma relação circunstanciada das obras do reformador, vindo especificada a coleção de sermões, que deu muitos volumes.”[18] Goguel informa que “pode ser avaliado em três mil o número de escritos deste gênero que dele possuímos.”[19] A série Corpus Reformatorum contém somente 872 sermões do reformador. Calvino pregava várias vezes por semana, quase diariamente, e duas vezes aos domingos.[20]
Beza relata que os irmãos de língua francesa, que se encontravam em Genebra, vendo o grande proveito que trariam os sermões de João Calvino se fielmente coletados e postos em forma escrita, trataram de achar um homem que tivesse esta aptidão com a disposição de escrever. Graças a essa iniciativa quase todos os sermões de Calvino foram redigidos por escrito, visto que o reformador nunca tinha diante de si papel algum para ajudar-lhe a memória, senão o simples texto das Escrituras.[21]
Acerca de sua vasta correspondência, escrita durante quase 30 anos para amigos, leitores leigos e eclesiásticos, a igrejas, reis, príncipes e nobres e aos perseguidos por causa do evangelho, Ferreira comenta:
"As cartas de Calvino, que atingem a mais de duas mil, ou quatro mil segundo alguns, são expressão viva do seu amplo e diversificado ministério, que não se continha nos limites da sua turbulenta Genebra, mas que se estendia a outros lugares, onde quer que os interesses do reino de Deus estivessem em jogo, levando a palavra do amigo, do conselheiro, do estadista, do teólogo."[22]
Beza conta que Calvino, num dos últimos dias de sua vida, entregou a seus cuidados o arquivo das cartas que escrevera, manifestando o desejo de que essa correspondência fosse preservada como um legado às igrejas reformadas.[23] As circunstâncias adversas que vieram logo após a morte de Calvino, inclusive a peste que assolou uma vez mais a cidade de Genebra, fazendo muitas vítimas, impediu o cumprimento do desejo expresso pelo reformador que, no entanto, não foi esquecido. Coube, afinal, ao Dr. Jules Bonnet [1820-1892] a pesada tarefa da busca e reunião das muitas cartas encontradas em vários lugares da Europa, tarefa essa que custou cinco anos de incansável labor e que acabaram integrando quatro grossos volumes das cartas de João Calvino.[24]
5. Outras Obras Literárias de CalvinoEm 1537 João Calvino publicou os Artigos concernentes à Organização da Igreja e do Culto em Genebra, nos quais ressalta a importância da Ceia do Senhor e a necessidade da disciplina eclesiástica. No mesmo ano (1537) preparou a Instrução e Confissão da Fé para uso dos leigos, também conhecida como Catecismo de Genebra, a primeira exposição sistemática do pensamento calvinista na língua francesa. Sua Resposta ao Cardeal Sadoleto (1539) é um documento notável sobre a posição reformada em contraste com os erros da igreja romana. A Forma de orar e a maneira de ministrar o Sacramento de acordo com o uso da Igreja antiga (1540) é um manual litúrgico onde Calvino procurou reter o que existe de valor na herança do passado. Nesse mesmo ano publicou seu Breve tratado sobre a Ceia de nosso Senhor. Em 1541 compôs um poema intitulado Epinicium, celebrando a vitória de Cristo sobre o papa. Prefaciou o Saltério Genebrino de 1542.
A partir de 1542 João Calvino ocuparia sua pena em uma série de questões polêmicas. Contra a defesa de Albert Pighius sobre o livre-arbítrio, o reformador francês publicou uma réplica intitulada Uma defesa da pura e ortodoxa doutrina da escravidão da vontade humana (1543). Nela Calvino aprova plenamente a obra de Lutero sobre A escravidão da vontade, na qual o reformador alemão ataca os pontos-de-vista defendidos por Erasmo de Rotterdam. A resposta de João Calvino dissuadiu Pighius de suas antigas opiniões. Esta foi seguida por Uma admoestação mostrando as vantagens que a Cristandade obteria de um catálogo de relíquias, sátira que obteve grande popularidade. Em seu Antídoto (1543) Calvino rebate, à luz das Escrituras, os vinte e cinco novos artigos de fé da Faculdade da Sagrada Teologia de Paris. O Pequeno tratado que mostra ao fiel conhecedor do Evangelho o que deve fazer quando está no meio dos papistas também apareceu em 1543. Foi o primeiro de dois trabalhos contra as opiniões dos nicodemistas, os quais sustentavam que o cristão poderia, em circunstâncias perigosas, ser um seguidor do evangelho em secreto, inclusive assistindo a missa, mas sem que o coração desse aprovação a isso. No ano seguinte (1544) João Calvino editou sua Defesa dos Nicodemistas, respondendo com mais veemência a seus opositores. Nesse mesmo ano escreveu sua Breve instrução para armar a todos os fiéis contra os erros da seita comum dos anabatistas.
Das obras de Calvino no campo da controvérsia, uma das melhores argumentações teológicas dele é a dissertação sobre A necessidade de reformar a Igreja (1544), uma apologia da Reforma destinada ao imperador Carlos V. Contra a “Paternal Admoestação” do papa Pio III ao imperador, o reformador escreveu Anotações à admoestação pontifícia. Em 1545 veio a lume a publicação de outra obra polêmica, Contra a fantástica e furiosa seita dos libertinos que chamam a si mesmos espirituais. Cerca de dezessete anos mais tarde, ao receber dos cristãos reformados da Holanda um trabalho escrito por um libertino, João Calvino compôs outra refutação com o título de Réplica a certo holandês que, sob o pretexto de formar cristãos muito espirituais, permite-lhes manchar o corpo com toda a sorte de idolatrias.
A publicação das atas do Concílio de Trento foi contestada por um Antídoto de Calvino em 1547. Em 1548 apareceu o “Ínterim ou Declaração de Religião” de Carlos V, confirmando a religião papal. João Calvino preparou uma réplica ao documento que chamou Ínterim adúltero-germano de Cerimônias e Sacramentos. Em 1549 Calvino redigiu, em vinte e oito breves parágrafos, um Consensus de Convênio Mútuo com o propósito de harmonizar as igrejas reformadas acerca dos sacramentos. Também compôs uma Exposição dos pontos mais importantes de seu Consensus que nos permite uma compreensão maior do seu zelo pela verdade. Escreveu Uma Segunda defesa da piedosa e ortodoxa fé concernente aos Sacramentos, em resposta às calúnias de Joachim Westphal (1554). Em 1557 veio a lume sua publicação da Admoestação final a Joachim Westphal. No ano de 1561 Calvino escreveria ainda Sobre a verdadeira participação da carne e sangue de Cristo, em homenagem póstuma ao amigo Felipe Melanchthon.[25]
ConcluindoEscrever acerca de João Calvino, seja qual for o aspecto da vida dele, é sempre uma grande tarefa. As informações sobre ele são muitas e variadas. Os biógrafos tanto se completam, por um lado, como se contradizem, por outro. Contudo, sabe-se que toda pesquisa deveria resultar num texto breve e claro. (Brevidade e clareza que Calvino apreciava e as empregava em seus escritos com tamanha genialidade). E isso, por si só, torna esta pesquisa um desafio a mais para quem deseja ser compreendido pelo leitor. Espero ter conseguido ajudar você neste ensaio sobre a obra literária de João Calvino.
Bibliografia Selecionada
Referências bibliográficas
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