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Destaques

✢ LANÇAMENTO: LIVRO "CALVINO, CIÊNCIA E FAKE NEWS"

  Não é sem imensa expectativa e alegria que se empreende a publicação da décima primeira obra de caráter temático calviniano da Série Calvino21 , sob autoria do Rev. J. A. Lucas Guimarães, historiador, teólogo e organizador do Calvino21 , intitulado  CALVINO, CIÊNCIA E FAKE NEWS:  a invenção da oposição calviniana à Ciência moderna na historiografia do século XIX.   Principalmente, ao considerar a singularidade do conteúdo, o nível do conhecimento alcançado e o caráter da percepção do passado envolvida, disponibilizados à leitura, reflexão e intelectualidade, caso o arbítrio do bom senso encontrado, esteja em diálogo com a coerência da boa vontade leitora. Com a convicção da pertinência da presente obra ao estabelecimento da verdade histórica sobre a postura de João Calvino (1509-1564) diante dos ensaios preparatórios no século XVI  ao início da Ciência Moderna ocorrido no século XVII,  representado por Nicolau Copérnico (1473-1543) com sua teoria do movimento da Terra ao redor do Sol

✢ ACEITAR A CRUZ É PARTE DA ABNEGAÇAO

 

João Calvino

Sobre a aceitação da cruz, que é parte da negação de nós mesmos *

┘1┌ É necessário, portanto, que a mente piedosa se eleve ainda mais alto, até onde Cristo convoca seus discípulos a que cada um tome sua cruz [Mt. 16.24]. Porque todos aqueles que o Senhor elegeu e julgou dignos do convívio entre os seus devem preparar-se a uma vida dura, trabalhosa, inquieta e repleta de muitos e variados tipos de males. Essa é a vontade do Pai celestial: colocar os seus à prova, para desse modo os exercitar. Assim procede com todos os seus filhos, a começar por Cristo, seu primogênito. Ora, embora fosse entre os demais o seu Filho amado, em quem o espírito do Pai se comprazia [Mt. 3.17, 17.5], no entanto, vemos que não o tratou com indulgência ou brandura, de modo que, em verdade, pode-se dizer que não somente foi exercitado numa cruz perpétua enquanto esteve na terra, mas também que toda a sua vida não foi senão uma espécie de cruz perpétua. O apóstolo nos dá a causa disso: que convinha a ele aprender a obediência, por meio daquilo que padeceu. Por que, então, isentaremos a nós mesmos da condição a que Cristo, nossa cabeça, teve de se submeter, especialmente quando se submeteu por nossa causa, para nos mostrar nele mesmo um exemplo de paciência? Por isso o apóstolo diz que Deus ensina ser a meta predestinada de todos os seus filhos tornarem-se semelhantes a Cristo (Rm. 8.29). Daí vem, também, o singular consolo de que, em meio a coisas duras e difíceis, consideradas adversas e más, nós nos comuniquemos com a paixão de Cristo, para que, assim como ele ingressou na glória celestial por um labirinto de todos os males, nós, do mesmo modo, cheguemos a ela por várias tribulações (At. 14.22). Porque o próprio Paulo fala, em outro lugar, desta maneira: quando aprendemos a comunicação com as aflições de Cristo, apreendemos simultaneamente o poder de sua ressurreição. E quando somos feitos semelhantes a ele em sua morte, assim nos preparamos para lhe fazer companhia em sua ressurreição gloriosa (Fp. 3.10). Quão grande eficácia isto tem para mitigar toda a amargura da cruz: saber que, quanto mais somos afligidos pelas adversidades, tanto mais certa é a confirmação de nossa união com Cristo! Com essa comunhão, os sofrimentos não apenas se tornam bênçãos para nós como ainda nos trazem grande auxílio para avançarmos em nossa salvação!

┘2┌ O apóstolo acrescenta que Nosso Senhor não tinha necessidade alguma de aceitar a cruz que levou, a não ser para testemunhar e provar sua obediência ao Pai. Mas para nós, sim, é necessário, por muitas razões, passar a vida sob uma cruz contínua. Primeiro porque (como somos demasiadamente propensos, em virtude de nossa natureza, a tudo conceder à nossa carne), a menos que nossa debilidade nos seja demonstrada de forma irrefutável, facilmente estimamos nossa virtude acima do que deveríamos, e não duvidamos, aconteça o que acontecer, de que ela há de permanecer inabalável e invencível em face de toda dificuldade. E daí somos levados à insensata e vã confiança da carne, apoiados na qual nos ensoberbecemos de modo insolente diante do próprio Deus, como se nossas faculdades nos bastassem sem a graça dele. Para melhor abater essa nossa arrogância, Ele nos põe à prova e nos faz reconhecer não apenas quão grande é nossa debilidade mas também de qual fragilidade padecemos. Por conseguinte, aflige-nos com a ignomínia, com a pobreza, com a perda de parentes, com a doença e com outras calamidades que somos, no que depende de nós, incapazes de suportar e sob cujos golpes sucumbimos de imediato. Humilhados dessa maneira, aprendemos a invocar a virtude do Senhor, única que nos faz resistir sob o peso das aflições. Mesmo os mais santos, embora saibam que se mantêm em pé pela graça de Deus e não pelas próprias forças, estariam mais seguros de sua fortaleza e constância do que deveriam se o Senhor, com a provação da cruz, não os induzisse a um conhecimento mais profundo de si mesmos. Essa presunção assaltou até o próprio Davi: “Em minha prosperidade, disse eu: ‘Não me abalarei jamais’. Senhor, em tua benevolência me firmaste como um monte forte. Escondeste teu rosto, senti-me perturbado.” (Sl. 30.7) Confessa, pois, que seus sentidos foram entorpecidos pela prosperidade a ponto de ele menosprezar a graça de Deus, da qual deveria depender, para apoiar-se em si e prometer-se uma tranquilidade permanente. Se isso aconteceu a tão grande profeta, quem de nós não temerá e acautelar-se-á? Logo, os santos, nas situações tranquilas, lisonjeavam a si mesmos com a opinião de maior constância e paciência; humilhados pelas situações difíceis, aprendiam que eram hipócritas. Digo que os fiéis, advertidos de suas enfermidades por tais experiências, aproveitam para conquistar humildade, a fim de, despidos da confiança perversa na carne, recorrerem â graça de Deus. Ademais, quando já recorreram a ela, experimentam e sentem a presença da virtude divina, na qual há amparo mais do que o suficiente.

┘3┌ Isso ê o que Paulo ensina ao dizer que “pelas tribulações se gera a paciência, e pela paciência, a prova.” (Rm. 5.3) Pois o que Deus prometeu aos fiéis, que estaria presente nas tribulações, sentem ser verdadeiro quando, apoiados em sua mão, resistem pacientemente, o que de forma alguma poderiam fazer com suas próprias forças. Logo, a paciência ê para os santos uma prova de que Deus lhes dá de fato o socorro que lhes prometeu, quando é necessário. Com isso se confirma também a esperança dos fiéis, uma vez que seria excessiva ingratidão não esperar no futuro a verdade de Deus, de cuja constância e firmeza já têm experiência. Vemos, pois, quantos bens surgem da cruz de uma só vez. Pois, ao destruir a opinião que falsamente presumimos de nossa própria virtude e ao revelar nossa hipocrisia, que nos dá tanto prazer, arranca de nós a perniciosa confiança na carne; e, uma vez humilhados dessa maneira, ela nos ensina a repousar somente em Deus, para que não ocorra de sermos oprimidos nem sucumbamos. Da vitória segue a esperança, enquanto o Senhor, ao cumprir o que prometeu, estabelece sua verdade para o futuro. Mesmo que só houvesse essas razões, vê-se claramente quão necessário nos é o exercício da cruz. Pois não é coisa de pouca importância arrancar de ti o cego amor por ti mesmo, para que te tornes mais cônscio de tua debilidade; que sejas ferido pela percepção de tua debilidade, para aprenderes a desconfiar de ti mesmo; que desconfies de ti mesmo, para transferires a Deus tua confiança; que repouses a confiança de teu coração em Deus, para que, apoiado em seu favor, perseveres vitorioso até o fim; e que perseveres em sua graça, para compreenderes que é veraz em suas promessas; que consideres como certa essa segurança de suas promessas, para que se consolide tua esperança a partir daí.

┘4┌ O Senhor tem ainda outra finalidade ao afligir os seus; pôr â prova sua paciência e instruir-lhes à obediência. Não que possam prestar-lhe outra obediência senão a que Ele mesmo lhes deu; mas agrada a Ele tornar, com admiráveis manifestações, incontestáveis e ilustres as graças que outorgou aos santos, para que não fiquem ocultas e ociosas dentro deles. Logo, ao tornar pública a virtude e constância da tolerância de que dotou seus servos, diz-se que põe à prova sua paciência. Daí expressões como “Deus tentou Abraão”, e considerou provada sua piedade, porque não se recusou a imolar o próprio e único filho (Gn. 22.1-12). Por isso, Pedro ensina que nossa fé não é menos posta â prova pelas tribulações do que o ouro é testado pelo fogo no forno (1Pd. 1.7). Mas quem dirá que não convém um dom tão excelente como o da paciência, que o fiel recebe de seu Deus, ser demonstrado na prática, para tornar-se certo e evidente? Pois, de outra forma, os homens nunca o estimariam como merece. E se o próprio Deus tem uma razão justa quando oferece aos fiéis ocasião de exercitar as virtudes que lhes conferiu, a fim de que estas não permaneçam inúteis e não se percam, melhor razão têm as aflições dos santos, sem as quais a paciência deles seria de nenhum valor. Afirmo também que, com a cruz, são instruídos a obedecer. Porque assim são ensinados a viver não conforme o próprio desejo, mas segundo a vontade de Deus. Claro que, se todas as coisas lhes corressem a gosto, não saberiam o que é seguir a Deus. E Sêneca menciona que havia este antigo provérbio, quando se exortava alguém a que suportasse as adversidades: “Segue a Deus.” Isso indicava que o homem se submete verdadeiramente ao jugo de Deus quando oferece a mão e as costas à sua palmatória. E se é algo justíssimo darmos prova de que seguimos ao Pai celestial em tudo, por certo não devemos nos recusar a que nos acostume, por todos os meios possíveis, a prestar-lhe obediência.

┘5┌ No entanto, não percebemos ainda quão necessária nos é essa obediência, a menos que pensemos, ao mesmo tempo, quão grande é a intemperança de nossa carne para arrancar de nós o jugo do Senhor, tão logo seja tratada com um pouquinho mais de delicadeza e indulgência. Pois acontece a ela o mesmo que aos cavalos indóceis, que, se ficam ociosos e bem alimentados por alguns dias, depois já não podem ser domados, tal sua ferocidade, nem reconhecem o cavaleiro a cujo comando antes sempre obedeciam. E Deus se queixa de que está perpetuado em nós aquilo que existia no povo de Israel: que, engordados e encobertos pela gordura, damos coices contra aquele que nos alimentou e sustentou (Dt. 32.15). A beneficência de Deus deveria realmente convencer-nos a considerar e amar sua bondade, mas nossa maldade é tanta que somos antes corrompidos por sua indulgência; por isso é necessário sermos contidos por alguma disciplina, para não nos entregarmos a tal petulância. Assim, para que não sejamos arrebatados pela excessiva abundância de riquezas, para que, arrogantes, não nos envaideçamos com as honras, para que, altivos, não nos tornemos insolentes por causa dos demais bens da alma, do corpo e da fortuna, então o próprio Senhor tem o cuidado de se apresentar, vem em nosso encontro e subjuga e refreia com o remédio da cruz a insolência de nossa carne. E isso de várias maneiras, conforme é mais salutar para cada um de nós. Pois nem todos padecemos de forma igualmente grave da mesma doença ou necessitamos igualmente de uma cura trabalhosa. Por isso, ê evidente que uns são exercitados por outro gênero de cruz. Embora, porém, trate a uns com maior suavidade e purgue a outros com remédios mais amargos, nosso médico celestial quer cuidar da saúde de todos e não deixa que ninguém saia imune e intacto, porque sabe que todos, sem exceção, estão enfermos.

┘6┌ Acrescenta-se que nosso clementíssimo Pai não somente tem necessidade de prevenir nossa enfermidade, mas, muitas vezes, também de corrigir nossos delitos passados, para nos manter na verdadeira obediência para com Ele. Por isso, sempre que somos afligidos, a recordação de nossa vida pregressa deve-nos vir ã mente. Assim descobriremos, sem dúvida, que fizemos algo digno de castigo. E, no entanto, a exortação à paciência não deve ser extraída, em primeiro lugar, do reconhecimento do pecado. Pois a Escritura fornece outra consideração muito melhor ao dizer que somos punidos pelo Senhor para não sermos “condenados com o mundo.” (1Co. 11.32) Logo, convém reconhecer a clemência e a benignidade de nosso Pai para conosco, mesmo na própria amargura das tribulações, uma vez que mesmo então Ele não deixa de preocupar-se por nossa salvação. Aflige-nos, pois, não para perder-nos ou destruir-nos, mas antes para livrar-nos da condenação deste mundo. Esse pensamento nos conduz ao que a Escritura ensina em outro lugar: “Não menosprezes, meu filho, o corretivo do Senhor, nem te enfades quando fores arguido por Ele. Deus corrige aquele a quem ama, e abraça-o como o pai a um filho.” (Pv. 3.11) Quando conhecemos o chicote do Pai, não é melhor mostrar-nos filhos obedientes e dóceis, em vez de imitar, com contumácia, os desesperados, que se endureceram com suas obras más? O Senhor nos põe a perder, a menos que nos atraia a si com suas correções, quando erramos. Por isso, diz-se com razão que somos filhos bastardos e não-legítimos se vivemos sem disciplina (Hb. 12.8). Logo, somos muito perversos se não o podemos suportar quando nos mostra sua benevolência e declara o quanto se preocupa com nossa salvação. A Escritura ensina que a diferença entre os incrédulos e os fiéis está em que aqueles, como os escravos de maldade inveterada e astuta, apenas se tornam piores e mais obstinados com os açoites; estes, em contrapartida, como filhos nascidos livres, aproveitam para emendar-se. Escolhe agora a que categoria preferes pertencer. Mas, uma vez que isso já foi dito em outro lugar, concluo aqui, contente de o ter exposto resumidamente.

┘7┌ Além disso, é um grande consolo sofrer perseguição pela justiça. Então devemos nos lembrar do quanto Deus nos honra quando nos confere a insígnia própria de sua milícia. Digo que sofrem perseguição pela justiça não somente aqueles que se engajam na defesa do Evangelho mas também aqueles que patrocinam qualquer causa justa. Assim, quer por afirmar a verdade de Deus contra as mentiras de Satanás, quer por tomar a defesa dos bons e dos inocentes contra as injustiças dos ímprobos, incorre-se necessariamente na ofensa e no ódio do mundo, e por isso nossa vida ou nossa honra estarão sob perigo iminente. Que não nos seja pesado ou incômodo dedicar-nos a Deus a esse ponto, nem nos julguemos infelizes por esses sofrimentos, por causa dos quais Ele mesmo disse que somos bem-aventurados (Mt. 5.10). Realmente, a pobreza é, considerada em si, uma miséria, assim como o exílio, o desprezo, o cárcere, a ignomínia, e por fim a morte, que é a última de todas as desgraças. Mas quando a benevolência de Deus nos favorece, não há nenhuma dessas coisas que não aconteça para nossa felicidade. Contentemo-nos, pois, mais com o testemunho de Cristo que com uma falsa opinião da carne. Assim, a exemplo dos apóstolos, regozijar-nos-emos sempre que Ele reputar dignos aqueles que soframos afronta por causa de seu nome (At. 5.41). Quê, então? Se, inocentes e de consciência limpa, somos despojados de nossos bens por maldade dos ímpios, diante dos homens somos reduzidos à indigência, mas, diante de Deus, nossas verdadeiras riquezas aumentam no céu. Se somos separados de nossos parentes, tanto mais somos recebidos na família de Deus; se somos humilhados e desprezados, tanto mais firmes nossas raízes em Cristo; se somos marcados por opróbrios e ignomínia, tanto maior nosso lugar no reino de Deus; se somos trucidados, desse modo se nos abre a porta para a vida bem-aventurada. Envergonhemo-nos, pois, de dar menos valor àquilo a que o Senhor atribuiu tão alto preço do que às ociosas e vãs seduções da vida presente.

┘8┌ E, já que a Escritura está repleta dessas admoestações e de outras semelhantes, com as quais suportamos, na defesa da justiça, ou ignomínias ou calamidades, seríamos muito ingratos se não as aceitássemos voluntariamente e de bom grado da mão do Senhor. Sobretudo porque essa espécie de cruz é em particular própria dos fiéis, e por ela Cristo quer ser glorificado em nós, como também Pedro o ensina (1Pd. 4.11). Mas, porque para os homens nobres a ofensa é mais amarga do que sofrer cem mortes, Paulo nos avisa expressamente de que nos esperam perseguições e afrontas, por termos nossa esperança no Deus vivo (1Tm. 4.10). Do mesmo modo, em outro lugar, ordena que, a exemplo seu, caminhemos “na má fama e na boa fama.” (2Co. 6.8). Mas não exige de nós uma alegria que suprima todo sentimento de amargura e de dor; de outra forma, a paciência dos santos na cruz seria nula se não fossem torturados pela dor e atormentados pela angústia. Se não houvesse aspereza na necessidade, se não houvesse suplício nas doenças, se não houvesse golpe na ignomínia, se não houvesse horror na morte, que fortaleza ou moderação haveria em fazer pouco caso dessas coisas? Mas, como cada uma contêm em si certa amargura, com a que naturalmente morde o coração de todos nós, nisto se mostra a fortaleza do homem fiel: se, tentado pela sensação de amargura, ainda que sofra intensamente, vence, resistindo com bravura. Nisto se mostra a paciência: se, mesmo estimulado duramente, ainda assim refreia-se pelo temor a Deus, para não se precipitar numa intempérie qualquer. Nisto se vê sua alegria: se, mesmo ferido pela tristeza e pelo luto, repousa no consolo espiritual de Deus.

┘9┌ O combate que os fiéis sustentam contra a sensação natural de dor, enquanto se dedicam à paciência e à moderação, Paulo descreve-o elegantemente com estas palavras: “Estamos oprimidos em tudo, mas não vencidos pela angústia; estamos em apuros, mas não desesperados; perseguidos, mas não desamparados; derrubados, mas não aniquilados.” (2Co. 4.8) Vês como carregar pacientemente a cruz não é tornar-se insensível ou privado de qualquer sensação de dor. Os estoicos antigos descreveram de modo tolo um homem magnânimo como aquele que, despojado de sua humanidade, não fosse atingido nem pelas coisas adversas nem pelas prósperas, nem pelas coisas tristes nem pelas alegres; e mais, aquele que não fosse atingido por coisa alguma, como se fora uma pedra. E de que lhes serviu essa sublime sabedoria? Em verdade, pintaram um simulacro da paciência, que de fato jamais pode ser encontrada entre os homens. E, enquanto queriam ter uma paciência tão exata e precisa, sujeitaram sua força à vida humana. Também hoje existem entre os cristãos novos estoicos, para os quais é repreensível não apenas gemer e chorar, mas até se entristecer e estar inquieto. E esses paradoxos procedem quase sempre de homens ociosos, que se exercitam mais em especular que em agir, e não são capazes de produzir senão tais paradoxos. Mas nada temos que ver com essa filosofia férrea, que nosso Senhor e Mestre condenou tanto pela palavra quanto pelo exemplo. Pois ele gemeu e chorou por suas dores e pelas dos outros. E não ensinou coisa diferente a seus discípulos. “Chorareis e lamentareis, mas o mundo se alegrará.” (Jo. 16.20) E, para que ninguém atribuísse isso a um vício, ele mesmo proclamou em discurso público: “Bem-aventurados os que choram.” (Mt. 5.4) Não há porque estranhar isso, pois, se todas as lágrimas forem reprovadas, que pensaremos do próprio Senhor, de cujo corpo brotaram lágrimas de sangue? (Lc. 22.24) Se classificarmos como infidelidade todo tipo de temor, em que lugar havemos de colocar aquele horror que, segundo lemos, o abalou profundamente? Se toda tristeza desagradar, como agradará a confissão dele de que sua alma estava “triste até a morte?”

┘10┌ Eu quis dizer essas coisas para afastar os espíritos piedosos do desespero, para que não renunciem à prática da paciência, porque não se podem desnudar do afeto natural da dor, o que necessariamente acontece àqueles que transformam a paciência em insensibilidade e fazem do homem forte e constante um tronco. Pois a Escritura faz o elogio da tolerância dos santos quando, mesmo tão aflitos com a dureza de seus males, não são quebrados nem abatidos; quando, de tal maneira são atormentados pela amargura, e ao mesmo tempo desfrutam de um gozo espiritual; quando, mesmo oprimidos pela angústia, respiram, deleitados com o consolo de Deus. Entretanto, a repugnância se apodera de seu coração, porque o sentimento da natureza foge e sente horror de tudo aquilo que sente lhe ser contrário. Mas, por outro lado, o sentimento de piedade os obriga à obediência ã vontade divina, inclusive em meio às dificuldades. O Senhor expressou essa repugnância quando falou assim a Pedro: “Quando eras mais jovem, tu amarravas teu cinto e andavas aonde querias; mas, quando fores mais velho, outro te porá o cinto e te levará aonde não queiras ir.” (Jo. 21.18) Não é verossímil, claro, que Pedro, que haveria de glorificar a Deus com sua morte, tenha sido arrastado a isso à revelia e ã força. Se fosse assim, pouco louvor mereceria seu martírio. Mas, por mais que se submetesse â ordem divina com grande alegria de coração, como, no entanto, ainda não se havia despido de sua humanidade, via-se dividido em duas vontades. Pois, quando pensava naquela morte cruel que havia de padecer, ele, tomado de horror, teria de bom grado escapado dela. Por outro lado, como atendia ao comando de Deus, que o chamava, essa morte, ele, tendo superado e calcado sob seus pés o temor, suportou-a voluntariamente e até com alegria. Logo, se queremos ser discípulos de Cristo, devemo-nos empenhar em que nosso espírito esteja tão imbuído de tal reverência e obediência a Deus que possa dominar e subjugar todos os afetos contrários àquilo que Ele ordena. Assim, seja qual for o tipo de cruz em que sejamos torturados, ainda que nas maiores angústias, perseveremos na paciência. Pois as próprias adversidades terão sua aspereza, com a qual nos morderão. Sim, afligidos pela doença, gemeremos e nos inquietaremos e ansiaremos pela cura; sim, oprimidos pela necessidade, seremos tocados pelos aguilhões da inquietação e da tristeza; sim, seremos feridos pela dor da ignomínia, do desprezo e da injúria; sim, derramaremos as lágrimas exigidas pela natureza nos funerais dos nossos; mas sempre chegaremos a esta conclusão: o Senhor quis assim; sigamos, pois, sua vontade. Mais ainda, é necessário que esse pensamento penetre nos próprios golpes da dor, nos gemidos e nas lágrimas, e incline nosso espírito a suportar com alegria as mesmas coisas que o entristecem.

┘11┌ Entretanto, uma vez que extraímos a principal razão para levar a cruz da consideração da vontade divina, é preciso definir em poucas palavras o que há de diferente entre a paciência filosófica e a cristã. É evidente que foram pouquíssimos os filósofos que se aprofundaram a ponto de compreender que somos postos à prova pela mão de Deus com aflições e que julgaram que estavam obrigados a obedecer-lhe com respeito a isso. Mas mesmo estes não aportam outra razão senão que assim era necessário. O que, contudo, significa dizer isso, a não ser que deves ceder a Deus, porque em vão tentarias resistir-lhe? Se nos sujeitássemos a Deus somente porque é necessário, deixaríamos de nos sujeitar se fosse possível evitá-lo. A Escritura, porém, ordena que consideremos outra coisa muito diferente na vontade de Deus; a saber, primeiro sua justiça e equidade, e depois a preocupação por nossa salvação. Logo, as exortações cristãs â paciência são desta forma: atormente-nos quer a pobreza, quer o exílio, quer o cárcere, quer a afronta, quer a doença, quer a perda dos parentes ou qualquer outra coisa semelhante, devemos pensar que nenhuma dessas coisas nos acontece se não é por vontade e providência de Deus. Além disso, Ele não faz nada a não ser atuar segundo a ordem mais justa. Quê, então? Acaso nossos inúmeros delitos cotidianos não merecem ser castigados com grande severidade e chibatadas muito mais pesadas do que aquelas que nos são infligidas por sua clemência? Acaso não é por demais razoável que nossa carne seja domada e como que submetida ao jugo, para que não se lance à libidinagem, como é de sua índole? Acaso a justiça e a verdade de Deus não são dignas de que soframos por elas? Porque, se a equidade de Deus mostra-se indubitável em meio às aflições, não podemos murmurar ou lutar contra ela sem iniquidade. Então, já não ouvimos aquela fria cantiga, “Deve-se ceder porque assim é, necessariamente”, mas uma pregação vívida e plena: “Deve-se obedecer porque resistir é ímpio; deve-se sofrer com paciência, uma vez que a impaciência é uma contumaz rebeldia contra a justiça de Deus”. Mas, como é amável para nós somente aquilo que reconhecemos ser para nosso bem e segurança, também nessa parte nosso Pai excelente nos consola quando assevera que, ao afligir-nos com a cruz, por isso mesmo olha por nossa salvação. Se compreendemos que as tribulações são salutares para nós, por que não aceitá-las com uma disposição de ânimo grata e serena? Porque, sofrendo-as pacientemente, não sucumbimos à necessidade, mas consentimos com o que é bom para nós. Digo que essas considerações induzem nosso espírito a, quanto mais diminuído sentir-se na cruz pelo sentimento natural da amargura, tanto maior se faça pela alegria espiritual. Daí segue também a ação de graças, que não pode existir sem o contentamento. Portanto, se o louvor ao Senhor e a ação de graças não podem emanar senão de um coração leve e feliz, não há nada que deva interromper isso em nós. Por isso é evidente quão necessário é temperar a amargura da cruz com o contentamento espiritual.

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* CALVINO, João. Institutas da Religião Cristã (Livro III, Cap. VIII). Texto adaptado da edição publicada pela UNESP (2008).

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