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✢ MARILYNNE ROBINSON: DEUS E BELEZA EM CALVINO
Andrew Brown *
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Há duas coisas notáveis sobre Marilynne Robinson, que ganhou o Prêmio Orange de ficção: ela é uma escritora muito boa e é uma cristã muito séria. Seus dois romances mais recentes, Gilead e Home [Gilead e A Casa. Nova Fronteira: 2005 e 2010], recontaram a história do filho pródigo de diferentes pontos de vista, ambientada em uma pequena cidade na planície de Iowa, em 1956. “Recontar” não é o que você pensa, quando os lê pela primeira vez. Então, o efeito avassalador é de ser contada uma história e ouvir uma voz, pela primeira vez.
Mas ambos são, na verdade, livros sobre o funcionamento da graça na vida humana, assim como foi Brideshead [Evelyn Waugg, 1945]. Mas eles são calvinistas, não católicos romanos, e seus prazeres são muito mais humildes. Também acho mais vívido. No final de Gilead, um velho pastor fala sobre o mundo ao seu redor:
“Adoro a planície! Tantas vezes vi a aurora vir chegando, a luz se espalhando pela terra, e, de imediato, tudo se tornando radiante, que a palavra “bom” criou raízes tão profundas na minha alma e eu me surpreendia por poder testemunhar algo assim. Pode ter havido um primeiro momento mais maravilhoso, “quando as estrelas da alva juntas alegremente cantavam, e todos os filhos de Deus jubilavam”, mas, apesar de tudo, acredito que continuam cantando e jubilando, e decerto têm toda razão para fazer isso. Aqui, na planície, não há nada para distrair a atenção do anoitecer e do amanhecer; nada no horizonte que abrevie ou retarde. Por este prisma, as montanhas pareceriam uma impertinência.”
A ligação entre alegria e beleza e a apreensão de Deus é muito vívida em Robinson. Entrevistei-a na semana passada em Genebra, como parte de um programa da Radio 3 que estou apresentando sobre Calvino. E ela deu uma justificativa extraordinária para o cristianismo calvinista tornar possível o romance moderno.
"Uma das coisas que realmente me impressionou ao ler Calvino", disse ela então, "é a forte noção que ele tem de que a estética é a assinatura do divino. Se alguém, em certo sentido, vive uma vida que podemos perceber como bela à sua maneira, isso é algo que sugere graça, mesmo que por um padrão moral estrito... essa possa parecer fracassar."
Ora, isto é praticamente o oposto do tipo de religião regida por regras e totalmente implacável que a maioria das pessoas associa ao calvinismo, mas em sua mente estava ligada à predestinação, de uma forma muito inesperada. Porque a predestinação implica a liberdade irrestrita de Deus, Ele pode escolher salvar aqueles que o mundo e as suas regras – até mesmo a igreja com suas regras – podem condenar. O pródigo nesses dois livros, Jack Boughton, fez coisas terríveis e, ao longo de todo o livro, continua machucando todos que o amam. No entanto, é quase impossível não sofrer com ele.
Eu queria muito, quando escrevi o personagem Jack, [criar] um personagem que seria muito doloroso às pessoas serem capazes de dispensar, com a suposição de que se alguém não pudesse dispensá-lo, também não haveria razão para acreditar que Deus também iria querer dispensá-lo.
Esse tipo de perspectiva explicitamente teológica é raro nos romances modernos. Mas ela não deve por um momento ser confundida com o tipo de realização de desejos brega comercializado em livrarias "cristãs". Graça, esperança e amor invadem seus romances, mas o véu sempre retorna e o mundo aparece novamente em sua desesperança acostumada. Às vezes, a tristeza é quase insuportável. Sentei-me em um trem de passageiros chorando em público enquanto relia o final de Home.
Talvez um reconhecimento sério da miséria do mundo esteja no cerne do seu propósito estético. Pouco antes de falar sobre a planície, John Ames, o velho pastor que citei anteriormente, diz o seguinte:
Há duas ocasiões em que a sagrada beleza da Criação se torna deslumbrantemente visível, e ambas acontecem juntas. Uma delas é quando sentimos a nossa insuficiência mortal com relação ao mundo; e a outra é quando sentimos a insuficiência mortal do mundo com relação a nós. Agostinho diz que o Senhor ama a cada um de nós como a um filho único, e isto tem de ser verdade. “E assim enxugará o Senhor Deus as lágrimas de todos os rostos.” O versículo não perde nada do seu tom amoroso se dissermos que é exatamente assim que as coisas devem ser.
O que importa, porém, em um contexto religioso, é que ela não busca fazer distinção entre o propósito estético e o teológico:
Calvino tornou a vida interior fantasticamente interessante, porque ele afirma que ela é o modelo mais claro que temos da natureza de Deus... Você sabe, ele disse, "para encontrar Deus, desça para dentro de si mesmo." Podemos conhecer a Deus porque compartilhamos qualidades que Calvino atribui a Deus... É o brilho da mente, o brilho dos sentidos, e assim por diante, que é a grande demonstração da divindade do homem.
Calvino, diz ela, quando traduziu o salmo oito, não escreveu que o homem era pouco inferior aos anjos, mas que ele era apenas um pouco inferior a Deus. Parte disso, era sua iconoclastia e sua ânsia de varrer todos os acréscimos medievais que humanizavam a fé dos pais do deserto. Mas grande parte do impulso, também foi varrer tudo o que separava o homem de Deus, para que pudéssemos ficar tão próximos dele quanto uma natureza separada permite. O romance, então, trazendo a glória e a tristeza do mundo aos nossos olhos até que estejam cheios a transbordar, também traz Deus para lá.
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