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✢ CRISTIANISMO DE APARÊNCIA NÃO BASTA
João Calvino *
Vamos perguntar aos que nada mais possuem além da membresia de uma igreja e que mesmo assim esperam ser chamados de cristãos, como conseguem glorificar o nome sagrado de Cristo?
Apenas quem tem recebido o verdadeiro conhecimento de Deus, através da Palavra do Evangelho, pode alcançar a comunhão com Cristo. O apóstolo afirmou que sem ter desprezado a velha natureza, com sua corrupção e seus desejos, ninguém jamais pode declarar que recebeu o verdadeiro conhecimento de Cristo. O conhecimento de Cristo somente exterior é uma perigosa crença, mesmo que as pessoas que as têm sejam de grande eloquência.
O evangelho não é uma doutrina da fala, mas de vida. Ele não pode ser assimilado único e exclusivamente por meio da razão e da memória. Porque somente se alcança a compreensão totalmente dele, quando ele domina toda a alma e adentra ao mais profundo do coração. Os cristãos nominais devem parar de ofender a Deus ao se gabar de serem algo que não são.
É indispensável, em primeiro lugar, nos ater no conhecimento de nossa fé. Porque ela é o princípio de nossa salvação. Por certo, se nossa fé ou religião não nos conduzir a uma transformação de nosso coração e de nossas atitudes, tornando-nos em novas criaturas, não nos beneficiará em nada.
Os filósofos corretamente condenam e excluem de sua companhia qualquer um que declara conhecer a arte de viver a vida, mas que, na realidade, é apenas uma criança gaguejante. Com muito mais motivos, os cristãos deveriam se revoltar contra aqueles que estão com o Evangelho em seus lábios, mas ausente de seus corações. Se comparadas com as convicções, os afetos e a força sem limites dos verdadeiros crentes, as recomendações dos filósofos são impessoais e sem vida [Ef. 4.20].
Não é devido continuar a requerer uma total perfeição em nossos companheiros cristãos, ainda que seja intensa a luta para nós mesmos obtê-la. Não seria sem injustiça o pedido de uma perfeição evangélica, sem a constatação de que a pessoa é uma cristã verdadeiramente. Caso determinássemos um estatuto, requerendo aos cristãos perfeição plena, não seria possível a existência de nenhuma igreja. Porque nos encontramos, sem exceção, à longa distância de verdadeiramente nos tornar cristãos ideais. Assim como, também, seria preciso desqualificar muitos, que apenas conseguem progredir lentamente.
Devemos ter a perfeição como alvo final, para onde nos encaminhamos, e o supremo propósito de nossas vidas. Não é correto que realizemos um acordo com Deus, em que cuidamos de cumprir parte de nossas obrigações e deixar de lado outras, conforme nosso gosto e capricho. Antes de qualquer coisa, o Senhor requer sinceridade em seu serviço e simplicidade de coração, sem engano e nem falsidade. Porque uma mente dividida encontra-se em crise com a vida espiritual, pois ela implica uma sincera devoção a Deus em busca de santidade e retidão.
Nesta terrena prisão do corpo, nenhuma pessoa possui força em si suficiente para avançar adiante com permanente vigilância e cuidado. Por vez, a maior parte dos cristãos sofre de tão enorme incapacidade, a ponto de se afastarem de seu progresso espiritual ou se impedirem dele, o que redunda em avanços muito vagarosos e raros.
Temos que permitir que cada um se encaminhe conforme habilidade recebida e mantenha, portanto, a peregrinação que tem empreendido. Não existe pessoa tão infeliz e incapaz que pouco a pouco não tenha obtido um pequeno progresso. Não deixemos de realizar o que for possível para prosseguir ininterruptamente mais adiante no caminho do Senhor. E não nos desesperemos em vista de nossas raras conquistas. Mesmo ainda não alcançado o nível espiritual que esperamos ou almejamos, nosso trabalho não foi em vão, se o dia de hoje superou em qualidade espiritual o dia de ontem.
A única condição ao verdadeiro progresso espiritual é que nos mantenhamos sinceros e humildes. Permaneçamos com nossa meta final em mente e com ela prossigamos com toda a nossa vontade. Não sucumbamos ao orgulho e nem nos lancemos às paixões pecaminosas. Exercitemos com total dedicação para atingirmos uma norma mais elevada de santidade. Isso até que alcancemos o melhor de nossa qualidade espiritual, devendo persistir nela no percurso de nossa vida. Apenas alcançaremos a perfeição plena, quando formos acolhidos por Deus em sua presença, ao sermos libertos deste corpo corruptível.
_________________
* CALVINO, João. Institutas da Religião Cristã (Livro III, Cap. VI.4).
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