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Destaques

✢ LANÇAMENTO: LIVRO "CALVINO, CIÊNCIA E FAKE NEWS"

  Não é sem imensa expectativa e alegria que se empreende a publicação da décima primeira obra de caráter temático calviniano da Série Calvino21 , sob autoria do Rev. J. A. Lucas Guimarães, historiador, teólogo e organizador do Calvino21 , intitulado  CALVINO, CIÊNCIA E FAKE NEWS:  a invenção da oposição calviniana à Ciência moderna na historiografia do século XIX.   Principalmente, ao considerar a singularidade do conteúdo, o nível do conhecimento alcançado e o caráter da percepção do passado envolvida, disponibilizados à leitura, reflexão e intelectualidade, caso o arbítrio do bom senso encontrado, esteja em diálogo com a coerência da boa vontade leitora. Com a convicção da pertinência da presente obra ao estabelecimento da verdade histórica sobre a postura de João Calvino (1509-1564) diante dos ensaios preparatórios no século XVI  ao início da Ciência Moderna ocorrido no século XVII,  representado por Nicolau Copérnico (1473-1543) com sua teoria do movimento da Terra ao redor do Sol

✢ JOÃO CALVINO (1509-1564) ¬ NDT


R. S. Wallace | NDT *

JOÃO CALVINO (1509-1564): Teólogo da Reforma. Nascido em Noyon, Picardia, França, Calvino passou grande parte de sua idade jovem estudando em Paris, preparando-se para o sacerdócio católico. Após estudos que fez de teologia escolástica medieval, seguiu-se um período em sua vida de preparo para exercer a advocacia, o que o colocou em contato com o humanismo cristão vigente na França, por intermédio de mestres como Lefèvre d’Étaples (1455-1529) e Guillaume Dudé (1468-1540). Grandemente influenciado por seus ensinamentos, ele escreveria, como sua primeira obra, um comentário sobre a obra De Clementia [Sobre a clemência], de Sêneca.

Veio a experimentar, porém, “repentina conversão”, cuja data não se sabe ao certo, disso resultando desconectar sua mente dos estudos para advogado que vinha realizando e se voltar com toda a dedicação ao estudo das Escrituras e do ensino da Reforma. Em 1536, publicava em Basileia a primeira edição de suas Institutas da religião cristã. Daí em diante, após curto e fracassado ministério em Genebra, viveria uma experiência enriquecedora de ensino e obra pastoral em Estrasburgo, de 1538 a 1541. Aceitando, então, um chamado para voltar a Genebra, ali permaneceu trabalhando pacientemente e lutando por muitos anos, procurando colocar em prática suas crenças a respeito do evangelho, da igreja e da sociedade. 

Quando Calvino começou sua obra teológica, a Reforma estava entrando em uma segunda fase importante de seu desenvolvimento. Sob Lutero e outros, a palavra de Deus havia rompido poderosamente com as antigas formas que durante muitos séculos tinham restringido o Espírito e obscurecido a verdade. O movimento inspirara inumeráveis sermões, escritos, conferências e controvérsias, produzindo significativas mudanças na vida social e política da Europa. As pessoas haviam sido levadas a novas experiências, ideais e esperanças. A remoção das antigas restrições, contudo, fizeram surgir especulações precipitadas, que ameaçavam a dissolução dos padrões morais e da ordem social. 

Em meio à confusão, Calvino assume a liderança da definição de novas formas de vida e de trabalho cristão, da igreja e da vida comunitária, que, sob o ensino recém-descoberto da Bíblia e o poder do Espírito, tornam-se relevantes para as condições da Europa de sua época. Além do mais, mostra-se capaz de ajudar seus contemporâneos a conseguir clareza de visão e ordenação no pensamento e na expressão teológicos, fornecendo-lhes uma compreensão mais firme do evangelho em sua plenitude. Ao mesmo tempo, pelo poder de sua pregação, pela clareza e simplicidade convincentes de seu ensino e por sua capacidade prática e integridade moral, que lhe deram indiscutível e definitiva liderança em sua comunidade, é visivelmente bem-sucedido em alcançar seus alvos em sua própria cidade-paróquia. Sua obra em Genebra faz crescer muitíssimo a fama amplamente espalhada, que seus escritos já lhe haviam granjeado. Sua vida e obra passam a ser, assim, ilustração bem importante e desafiadora de como nossa teologia, se saudável, deve estar relacionada à nossa situação de vida. 

A teologia de Calvino é uma teologia da palavra de Deus. Ele sustentava que a revelação dada a nós por meio das Escrituras é a única fonte confiável de nosso conhecimento de Deus. Embora a natureza também revele Deus, e todos os homens e mulheres tenham um instinto natural para a religião, a perversidade humana nos impede de sermos capazes de saber aproveitar sadiamente aquilo que a natureza nos apresenta. Desse modo, devemos nos voltar para o testemunho da revelação dada por Deus a seus profetas e servos no AT e para o testemunho apostólico de Cristo no NT. As próprias Escrituras são inspiradas e, até mesmo, “ditadas” por Deus. Suas afirmativas, narrativas e verdades devem ser consideradas como dotadas de autoridade infalível. 

Calvino acreditava em uma unidade básica no ensino das Escrituras, cabendo ao teólogo procurar esclarecer e dar expressão a essa unidade na composição ordenada de suas doutrinas. Como teólogo, procurava, assim, atender a todo o conteúdo da palavra escrita de Deus. Reconhecia, contudo, que as Escrituras nos foram dadas por Deus não só e simplesmente para nos presentear na atualidade com verdades e doutrinas, mas também para nos introduzir na revelação viva, da qual a palavra escrita dá testemunho. No âmago dessa revelação, sobre a qual os apóstolos e profetas escreveram, ocorrera o encontro pessoal deles com o próprio Verbo de Deus, a segunda pessoa da Trindade. Ainda que recipientes de verdades e doutrinas, no entanto, as testemunhas bíblicas também se reconheciam como simples seres humanos diante do próprio Deus, presente em amor pessoal e majestade. Calvino estava convicto de que o teólogo, em sua abordagem às Escrituras, deveria procurar se encontrar e se considerar nessa mesma posição. Deveria buscar assim, mediante as Escrituras, colocar-se em comunhão e confrontação com o próprio Senhor e, ao dar forma à sua teologia, levar em conta todos os eventos originais, nos quais e pelos quais Deus se revelou ao seu povo. 

Calvino usa, por vezes, a linguagem do misticismo para descrever como a fé nos capacita, por meio da palavra e do Espírito, compreender em visão muito mais do que poderia ser compreendido imediatamente pelo nosso entendimento. Em sua abordagem às Escrituras e em sua tarefa teológica, portanto, foi parte importante a busca em oração por um entendimento mais pleno daquilo que já tivesse de algum modo compreendido e por uma comunhão mais próxima com o Deus vivo. 

Calvino não tentou, desse modo, criar uma teologia sistemática sujeitando as verdades das Escrituras a qualquer princípio controlador do pensamento ou da lógica humanos. Permitiu, ao contrário, que seu próprio pensamento fosse controlado por toda a palavra que Deus havia falado em Cristo. A ordem com que era capaz de dispor seu pensamento era a mesma que detectava na revelação que se registrava em sua mente. Calvino escreveu comentários sobre quase todos os livros da Bíblia. Esses comentários tiveram ampla aceitação e são ainda de grande uso nos estudos. Aplicou métodos da erudição humanista à Bíblia a fim de encontrar o significado exato das palavras no texto, bem como as circunstâncias históricas particularmente envolvidas na narrativa. Sua crença na autoridade e integridade da palavra tornava impossível, no entanto, uma abordagem crítica ao texto. Embora concordasse em que um texto pudesse ter vários sentidos, escasso foi seu uso do método alegórico de interpretação. Acreditava que Cristo esteve presente junto ao povo de Deus no AT, embora sua revelação manifesta na época tomasse formas diversas da do NT. Foi dos primeiros a reconhecer o uso da tipologia como chave para o entendimento da unidade existente entre os dois testamentos. Sua crença nessa unidade o capacitou a interpretar como um só texto a totalidade das Escrituras. 

Em sua exegese e obra teológica, Calvino sempre se colocou em débito com outros eruditos. Foi especialmente influenciado por Agostinho e dedicado estudioso dos pais gregos e latinos. Ele daria expressão final à sua teologia na última edição das Instituías, em 1559 (a francesa, em 1560). A obra é constituída de quatro partes, seguindo até certo ponto a ordem sugerida pelo Credo Apostólico: Livro I, Deus, o Criador; Livro II, Deus, o Redentor; Livro III, o modo de recebermos a graça de Cristo; Livro IV, a igreja. 

Na doutrina de Deus, Calvino evita a discussão da essência oculta de Deus (o que Deus é), restringindo-se ao ensino bíblico sobre a natureza de Deus (de que espécie Ele é). O próprio Deus proclama sua “eternidade e autoexistência” ao pronunciar seu nome: “Eu Sou o que Sou”. A ênfase de Calvino é sempre sobre os atributos morais ou “poderes” de Deus. Ele vê tais qualidades devidamente listadas em dois textos específicos: Êxodo 34.6-7 e Jeremias 9.24, que se referem, principalmente, à sua misericórdia e justiça. Também em suas atividades na igreja e na administração civil, Calvino sempre procurou mostrar que Deus era tanto “um Deus justo quanto salvador”, sem que um aspecto de sua bondade excluísse o outro. Discutindo a doutrina de Deus, não faz menção à “soberania de Deus”, que não foi sempre (como alguns pensam) um princípio predominante de sua teologia. Para ele, a glória era um atributo especial de Deus, revelado por toda parte no mundo, brilhando em todas as suas obras redentoras, mas mais plenamente exibida na humilhação e no amor revelados na cruz. Calvino coloca a Trindade no centro de sua discussão sobre a natureza de Deus, uma vez que a revelação nos faz ingressar no cerne do mistério do próprio ser divino. Frequentemente, em sua teologia, Calvino nos lembra que Deus se revela plenamente em Cristo e que não devemos nos voltar para nenhuma outra fonte além do evangelho para o nosso conhecimento dele. 

Ao discutir sobre como Deus age com sua providência, é frequente discorrer de um modo pastoral (característica de grande parte da teologia de Calvino). Garante ele que Deus está sempre atuante, sustentando e guiando a totalidade de sua criação e dirigindo todo o curso da história humana, com preocupação paternal e graciosa. A igreja e o cristão, não obstante, estão sob cuidado especial nas mãos de Deus, tal como Cristo estava. Jamais nos encontramos nas mãos do “destino” ou do acaso. 

A discussão que Calvino faz da providência apresenta, no entanto, uma dificuldade quando sugere que, por um decreto de Deus desde a eternidade mais remota, os planos e a vontade das pessoas são tão governados que se movem exatamente no curso que ele já destinou. Desse modo, ao discutir a predestinação, remonta à rejeição desse decreto de Deus pelos não eleitos, o que define com a palavra latina horribile, ou seja, “horrível, terrível, apavorante, aterrador.” Nesse ponto, muitos hoje levantariam questão, indagando se o próprio Calvino estaria sendo fiel ao impulso central de seu próprio ensino sobre Deus e se estaria fazendo justiça ou não à liberdade com que, na Bíblia, Deus parece agir e reagir em situações em desenvolvimento. Convém lembrar que Calvino revisou por diversas vezes suas Instituías enquanto redigia seus comentários e não considerava sua teologia como tendo alcançado finalidade definitiva. 

Em sua discussão sobre a pessoa e a obra de Cristo, Calvino repetiu, concisa e acuradamente, o ensino dos pais e concílios da igreja. Enfatizou o mistério oculto na pessoa do Mediador, afirmando que “o Filho de Deus desceu do céu de tal forma que, sem deixar o céu, quis nascer do ventre de uma virgem, para vir à terra e ser pendurado em uma cruz; todavia, preencheu continuamente o mundo, exatamente do mesmo jeito que havia feito desde o começo”. Contudo, algumas vezes enfatiza serem tantas as limitações e a fraqueza da humanidade de Jesus que alguns chegaram a suspeitar dele, não crendo em sua divindade. Ele compreendeu que temos de procurar compreender a pessoa de Jesus mais em termos das funções que exerceu do que em termos da essência que ocultava. Foi Calvino o primeiro teólogo a interpretar sistematicamente a obra de Cristo em termos do tríplice oficio de profeta, sacerdote e rei. Destacou o elemento penal nos sofrimentos de Cristo sobre a cruz, enfatizando também, todavia, o valor colocado por Deus sobre sua obediência constante, tanto obediência ativa como passiva, e sua autoidentificação empática para conosco em nossa humanidade. A encarnação, Calvino, criou uma “santa irmandade” entre ele e nós, de tal modo que ele pudesse “tragar a morte e substituí-la pela vida, vencer o pecado e substituí-lo pela justiça.”

Discutindo a respeito de como a queda afetou a humanidade, originalmente feita à imagem de Deus, Calvino permite-se, quanto a nós, usar a expressão “depravação total”, mas no sentido de que nenhum aspecto do ser ou da atividade original do homem deixou de ser afetado pelo seu pecado. Em todas as nossas relações com os outros, diz ele, deveríamos considerar cada pessoa como estando ainda dotada da imagem divina, não importa quão baixo ela possa ter caído. Há duas esferas em que a vida humana é estabelecida por Deus – a espiritual e a temporal. A respeito dos assuntos espirituais ou celestiais, a humanidade foi destituída de todo verdadeiro conhecimento e capacidade. No tocante às atividades temporais ou terrenas, o homem natural ainda detém qualidades e habilidades admiráveis, pelas quais conduz seus múltiplos afazeres humanos. Calvino admirava, por exemplo, a luz divina que havia brilhado nos antigos legisladores pagãos na concepção dos seus códigos legislativos, reconhecendo que o homem foi capacitado por Deus, mesmo em seu estado de decaído, com brilhantes dons, que adornariam sua existência, permitindo seu conforto e um tanto de contentamento e autoexpressão artística em sua vida na terra. Ele lembra a seus leitores que, na criação, Deus proveu para o nosso uso não somente as coisas que são necessárias para sustentar nossa vida, mas também muitas outras coisas, proveitosas e belas, destinadas a nos proporcionar prazer e alegria. Uma das realizações finais de Calvino foi fundar em Genebra uma academia onde as “artes liberais e a ciência” eram ensinadas por mestres versados em estudos humanísticos. Calvino, contudo, preocupava-se com que o desenvolvimento e o uso dessas artes e ciências estivessem de acordo com a lei de Deus e que fossem especialmente usadas no serviço da palavra de Deus e na promoção de uma comunidade cristã estável. 

Ele buscou dar continuidade e completar a obra começada por Lutero e outros reformadores. Repetia frequentemente as críticas feitas por seus predecessores a Roma por negar ao homem comum qualquer condição de segurança pessoal perante um Deus tão gracioso. Nove capítulos de suas Instituías foram dedicados somente à doutrina da justificação pela graça e à liberdade cristã que ela implicava. Todavia, influenciado pela situação prevalecente ao seu redor, passou a insistir mais fortemente do que já fizera antes sobre a importância da santificação ou do arrependimento, definindo mais claramente para sua época um novo padrão de vida cristã, que por si só pudesse formular uma resposta adequada e digna à graça de Deus e ao chamado em Cristo. Assim, na edição final (de 1559) de suas Institutas, precedeu os nove capítulos sobre justificação com outros nove sobre santificação e arrependimento. Enfatiza o fato de que não pode haver perdão sem arrependimento, pois ambas essas graças fluem de nossa união com Cristo, e nenhuma das duas pode ser anterior ã outra. Insiste em que nada do que Cristo sofreu ou fez por nós em sua obra redentora terá valor se não estivermos unidos a ele pela fé a fim de recebermos pessoalmente dele a graça que nos quer propiciar. Ensina, enfim, que essa “união mística” entre nós e Cristo é obra do Espírito Santo. 

Para Calvino, o cristão deve não só estar unido, a Cristo, mas viver em conformidade com ele, em sua morte e ressurreição. Tem de ouvir a ordem imperativa de Deus: “Sejam santos, porque eu sou santo”, assim como o chamado do Senhor para negar-se a si mesmo, tomar sua cruz e segui-lo. Calvino ataca a raiz do pecado humano, que reside no amor a si mesmo, mostrando que somente a autonegação pode ser a base de um eminente amor a todas as pessoas. Insta quanto à aceitação triunfal de toda forma de sofrimento para nos conformarmos à imagem de Cristo. Cada um de nós dará expressão obediente ã fé cristã ao buscar nosso chamado neste mundo. É verdade que pretendemos desfrutar dos benefícios terrenos que Deus frequentemente faz chover sobre nós, e usá-los ao buscarmos nosso caminho na vida; todavia, até mesmo desse prazer devemos procurar nos manter afastados, aspirando sempre à vida vindoura, da qual mesmo aqui e agora podemos desfrutar algum tipo de antegozo. 

Foi o desejo de Calvino de ajudar o crente a viver a vida cristã em plena segurança que o levou a dar destaque à doutrina da predestinação em sua teologia. Era seu pensamento que nenhum cristão poderia ser finalmente vitorioso e se sentir confiante a menos que tivesse algum senso de sua eleição para a salvação. Acreditava que as Escrituras realmente ensinam essa doutrina e que assinalam, também que aqueles que se recusassem a crer devem estar predestinados à condenação. Os ataques aos seus escritos sobre esse assunto o forçaram a defender-se em diversos tratados sobre a matéria. Não se deve supor, no entanto, que essa fosse a doutrina central de sua teologia. É bastante significativo que, junto aos seus capítulos sobre a predestinação nas Instituías, Calvino tenha posto seu magnificente capítulo sobre a oração, em que somos instados a exercer nosso livre-arbítrio em intercessões junto a Deus e a procurar a resposta para as orações que fazemos. 

Uma grande seção das Institutas trata da igreja e seu ministério. Calvino almejava que a forma de ministério na igreja, especialmente o do pastor, refletisse o próprio ministério de Cristo, de completa humildade, interesse voltado a cada indivíduo e fidelidade à verdade, exercido no poder do Espírito. Preocupava-o a instrução, a disciplina e a assistência aos pobres. Por isso, cria que, juntamente com o pastor, no ministério, Deus colocava mestres ou “doutores” (especialistas nas Escrituras e em teologia), presbíteros e diáconos. Ele encontrara, naturalmente, esses ofícios indicados nas Escrituras, mas não insistia em que cada detalhe da vida ordenada da igreja exigisse uma autorização bíblica explícita. Admirava o desenvolvimento da doutrina e liturgia durante os primeiros seis séculos de vida da igreja e não teve nenhuma hesitação em reproduzir aspectos desse desenvolvimento. Era de opinião que o “bispo” do NT e da igreja primitiva correspondia ao então pastor de uma congregação, em uma igreja verdadeiramente reformada. Todas as cerimônias eclesiásticas deveriam ser simples, claramente inteligíveis e justificáveis à luz da Bíblia. Estava convencido de que o segundo mandamento proibia não só o uso de imagens na adoração, mas também a invenção de cerimônias para simplesmente estimular a emoção religiosa. Encorajava o cântico congregacional, embora achando que os instrumentos musicais tinham um som muito incerto para constituir um acompanhamento adequado da adoração racional. 

Calvino seguiu Agostinho com respeito ao sacramento, como sinal visível de uma graça invisível. Só o batismo e a ceia do Senhor eram sacramentos com autoridade dominical. Denunciou a doutrina da transubstanciação e a ideia de que um sacramento fosse eficaz em virtude de ser meramente apresentado como ritual. Mas rejeitou também a ideia de que o pão e o vinho fossem dados por Cristo como meros símbolos, representando seu corpo e sangue, apenas para estimular nossa memória, devoção e fé. Os sacramentos oferecem o que representam, insistia ele. Não somos ordenados simplesmente a olhar os elementos, mas, sim, a comer e a beber. Esse é um sinal de que, entre ele e nós há uma união de doação de vida (em relação ao que Calvino chega mesmo a usar a palavra “substancial”). Essa união é dada e criada quando a palavra é pregada e respondida em fé; é, também, aumentada e fortalecida quando o sacramento é recebido pela fé. Calvino rejeitou, ainda, explicações luteranas, vigentes na época, sobre o mistério da eficácia do sacramento. Ele afirmava, com frequência, que o corpo de Cristo do qual nos alimentamos permanece no céu e que nossa alma é elevada até lá pelo poder maravilhoso do Espírito para nos alimentarmos dele. Calvino insistia em que um sacramento era ineficaz independentemente da fé do recipiente. Justificava o batismo infantil por sua visão de unidade da antiga com a nova aliança, realçando ainda que a eficácia de um sacramento não precisa estar necessariamente ligada ao momento mesmo de sua administração. 

O relacionamento entre a igreja e o Estado era uma questão crucial no tempo de Calvino. Seus embates em Genebra o colocaram em uma posição firme contra as tentativas da autoridade civil de interferir nas questões relativas à disciplina eclesiástica, que ele achava que devia estar inteiramente sob o controle de uma corte especificamente eclesiástica. Tinha o Estado em alta conta, salientando o dever dos cidadãos de obedecer à lei e honrar seus governantes. Enfatizava também, no entanto, o dever dos governantes de, semelhantemente aos pastores, cuidar de cada um e de todos os seus súditos. Aconselhava a obediência dos cidadãos até mesmo aos tiranos e a aceitação do sofrimento injusto como opção preferível a ter de recorrer à conspiração revolucionária. Acreditava, no entanto, que um tirano poderia vir a ser afastado pela ação deliberada de uma autoridade inferior, devidamente constituída, do mesmo Estado ou por intermédio de um agente “vingador” procedente de outro lugar, tendo sido para isso levantado e eleito por Deus.

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* Verbete de WALLACE, R. S. João Calvino (1509-15640). In FERGUSON, Sinclair; WRIGHT, David. F. (ed.). Novo Dicionário de Teologia. São Paulo: Hagnos, 2009.

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