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CALVINO E A REFORMA NO DIA DE TODOS OS SANTOS

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Há uma ocasião dupla para esta postagem. A primeira ocasião tem a ver com a data dela. O dia 31 de outubro é uma data especial na história da Igreja. Nessa mesma data, em 1517, Martinho Lutero afixou suas teses nas portas da Igreja do Castelo de Wittenberg. Embora pretendesse apenas iniciar um debate acadêmico, Lutero, de fato, inaugurou a Reforma Protestante. Ainda que essa data seja muito conhecida, o Dia de Todos os Santos, 1º de novembro, geralmente não é associado à Reforma. No entanto, de certo, há bons argumentos para isso. Para entender o motivo, precisamos ir a Paris. Isso me leva à outra ocasião para escrever esta postagem. Na semana passada, passei alguns dias em Paris, participando de uma conferência muito inspiradora. Hospedei-me em um hotel nos arredores da universidade mais famosa e antiga de Paris, a Sorbonne. Aqueles que conhecem os escritos de Calvino sabem que ele podia ser muito veemente em suas polêmicas com os teólogos da Sorbonne. Na verdade, quando ele escreve pejorativamente sobre “os escolásticos”, são eles que, quase sempre, tem em mente.

Os edifícios da Sorbonne estão localizados no Bairro Latino (Quartier Latin). Era, e ainda é, um bairro de Paris predominantemente estudantil. No início do século XVI, Calvino era um deles. Na verdade, ele residiu em Paris diversas vezes. Na década de 1520, estudou no (in)fame Collège de Montaigu. Mas é muito difícil determinar com quem ele estudou (John Major?), quanto mais qual era o conteúdo de seus estudos. No entanto, no início da década de 1530, ele retorna a Paris, após estudos em Orléans e Bourges. Instala-se no Collège de Fortet, próximo ao Collège de Montaigu, no Bairro Latino. Tornou-se “ouvinte”, no recém-fundado Collège Royal, de Guillaume Budé. Além disso, Calvino dedicou-se intensamente ao seu comentário sobre De Clementia, de Sêneca. A obra foi concluída em fevereiro de 1532 e impressa em Paris dois meses depois. Calvino almejava uma carreira acadêmica e este livro deve ser considerado um passo muito importante nessa direção. No entanto, as coisas tomariam um rumo diferente. Em sua biografia sobre João Calvino, Bruce Gordon, professor de Yale, escreve:
Uma brisa de ideias humanistas e evangélicas soprou sobre Paris, nos primeiros anos da década de 1530, e foi sentida por Calvino. Em 1532, foi a publicação de Pantagruel, de François Rabelais, sob pseudônimo, na qual os doutores da Sorbonne eram ridicularizados. Em uma carta longa e repleta de notícias, de outubro de 1533, ano de sua conversão, Calvino relata a Daniel Lambert os eventos envolvidos na apresentação de uma peça escandalosa por estudantes, que levou as autoridades à abertura de investigação. Ele passa à desastrosa história da condenação, pela Faculdade de Teologia, de uma obra intitulada O Espelho da Alma Pecadora – um volume de versos devocionais publicado em Alençon, em 1531, e em Paris dois anos depois, que se revelou sendo da autoria, de ninguém menos, que da própria Margarida de Navarra, que prontamente se queixou ao seu irmão, o rei. […] Humilhada, a faculdade de teologia foi forçada a recuar (Bruce Gordon, Calvin, p. 36-37).

O que tudo isso indica? Assinala o aumento das tensões entre os doutores da Sorbonne, por um lado, e as ideias humanistas e evangélicas emergentes, por outro. Nesse momento, Nicolas Cop, o novo reitor da universidade, teve que proferir seu discurso inaugural no Dia de Todos os Santos de 1533, na Igreja dos Mathurins. Calvino fez amizade com Cop e sua família. Tem sido motivo de considerável debate se Calvino foi (em parte) o autor das palavras de Cop. O biógrafo francês de Calvino Bernard Cottret, por exemplo, é categórico em descartar a possibilidade da autoria calviniana. Bruce Gordon, por outro lado, está mais propenso a considerar a influência de Calvino sobre Cop, até a ponto de uma autoria compartilhada. Depende não apenas da probabilidade de Calvino ter escrito (partes) desse discurso, mas também da nossa visão sobre a conversão dele. Essa é outra questão complexa e com muitas opiniões divergentes. Seja como for, o único ponto que quero destacar aqui é que o discurso “foi uma interpretação erasmiana das Escrituras com inconfundíveis nuanças luteranas, particularmente sobre a Lei e o Evangelho” (Gordon, Calvin, p. 37). Quando você lê essas palavras, tendo em mente a atmosfera tensa de Paris, é fácil entender por que esse discurso causou tanta comoção. Cop contrastou a Lei com o Evangelho. Ele falou de Deus, que nos desperta do sono nas trevas. E disse ao seu público que o perdão dos pecados e o amor de Deus são o único remédio para uma consciência perturbada.

Não é de se admirar, portanto, que os teólogos da Sorbonne tenham ficado furiosos. Eles viram uma oportunidade de reabilitação e sugeriram ação imediata às autoridades. Cop teve que fugir de Paris, avisado por um amigo de que estava sendo procurado. E Calvino também partiu rapidamente de Paris. O que isso significa? Embora não possa ser uma pista decisiva para responder à questão da autoria do discurso de Cop, sugere fortemente que, a essa altura, Calvino se sentia profundamente associado, senão comprometido, com o tipo de interpretação do Evangelho que Cop havia apresentado. Mas precisamos dar mais um passo. Pelo fato de Calvino ter fugido de Paris, ele praticamente tomou uma decisão. Não era irreversível, certamente. O próprio Nicolas Cop poderia retornar a Paris, posteriormente. Meu ponto é este: se admitirmos que Calvino esteve pelo menos parcialmente envolvido no rascunho do discurso de Cop, então esse evento não é incomparável com a fixação das teses de Lutero nas portas da Igreja em 1517. Lembre-se de que Lutero não pretendia uma Reforma naquele momento da história. Calvino também não planejava ser um reformador em 1533. Mas, agindo da forma como agiram, escolheram um caminho que os levaram a defender mais claramente e publicamente a causa do Evangelho.
É bastante arbitrário apontar uma data da história como o ponto inicial da Reforma, seja 31 de outubro (como no caso de Lutero) ou seja o Dia de Todos os Santos (como no caso de Calvino). Em ambos os casos, os eventos nessas datas foram apenas um momento em uma série de muitos momentos decisivos. No entanto, o que aconteceu nessas datas foi, em certo sentido, muito importante e decisivo. Foi a primeira vez que ambos se apresentaram publicamente com opiniões evangélicas. Ambos teriam ficado surpresos com os eventos causados por suas ações. Mas nenhum dos dois queria voltar atrás. Eles haviam se tornado defensores da Reforma.
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