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CALVINO, THANOS E BOLSEC: AH, SE AO ESTALAR DOS DEDOS!

♥┌ Introdução: o insustentável poder do evitável
No aclamado filme Vingadores: Guerra Infinita (2018), dos estúdios da Marvel, ao fazer convergir em si mesmo suas táticas, Thanos chega na Terra não apenas para empreender, pessoalmente, a aquisição das Joias do Infinito, mas, inevitavelmente, do próprio destino da humanidade. Não por acaso, o alienígena deixou-nos confusos e perplexos, quando no final do enredo do filme, derrota os Vingadores e com um estalar de seus dois dedos faz desaparecer da existência, literalmente, a metade da população mundial. Ele acreditava que esse era seu destino, causa da busca e posse das Joias do Infinito. Nas vitórias, sua justificativa aos derrotados, quando o olhavam em busca do último entendimento sobre como os venceram implacavelmente. “— Eu sou inevitável”, respondia. Essa frase ele disse no último segundo da batalha final, em Vingadores: Ultimato (2019), antes do estalar dos dedos, como dispositivo que acionaria o desaparecimento de toda humanidade. Ele queria que os Vingadores soubessem que nada poderia deter seu destino em destino do destino deles! Ao estalar os dedos, todavia, viu-se como evitável!
♥┌ Ah, se Calvino sumisse num estalar de dedos
A riqueza artística e memorável da iconografia (pinturas), filatelia (selos) e numismática (moedas e medalhas) calvinianas somam-se antes mesmo do falecimento do representado em 1564. No entanto, toda essa expressão de reconhecimento das gerações pós-calvinianas poderia não existir. Ao reformador protestante João Calvino (1509-1564), em tempo paralelo, multiplicaram-se os mecanismos de aviltamento à sua pessoa, deturpação de sua imagem e estereotipação de seu pensamento e legado. Era possível pensar que, inevitavelmente, seu nome e sua imagem seriam apagados ou borrados, a ponto de não ser possível identificá-lo como vulto ilustre na história da França ou do Protestantismo mundial.


Thanos empreendeu toda sua tática em busca de ter posse do meio de fazer desaparecer a metade da população humana da fase da Terra. Fora da ficção, a história é testemunha que, não sendo possível a posse das Joias do Infinito, outros meios foram usados para fazer desaparecer do registro histórico um desafeto.
♥┌ "O outro Calvino"
No livro Calvino: “Quem dizem que sou?” – Esboços de retratos calvinianos, organizado pelo historiador J. A. Lucas Guimarães, idealizador do Calvino21, em um dos capítulos apresenta resultado de pesquisa mostrando que, após sua morte, João Calvino foi vítima de guerra de biografias, envolvendo dois grupos principais.
De um lado, os amigos as escreveram em memória à pessoa do reformador, do qual vivenciaram uma sincera amizade, simplicidade de vida e de alma, liderança conciliar, admirável expositor da verdade bíblica e da doutrina do Senhor e teólogo sistemático da ortodoxia cristã a exemplo de Teodoro de Beza (1519-1605), pastor que o substituiu na Igreja de Genebra, com a obra Vita Calvini [Vida de Calvino], em 1575. Essa é a primeira biografia sobre o reformador, a qual o autor justifica sua escrita, alertando que:
Beza estava temerário que sua biografia fosse recebida como um feito de bajulação póstuma ao seu amigo mais próximo, ao qual não pouparia elogios, expressão de sua admiração e motivo para o tornar vulto cristão reverenciado, em benefício da continuidade do legado doutrinário e eclesiológico calvinianos em Genebra sob seu encargo. Contudo, ao biografar o amigo ocorrida sua morte apenas uma década, “o estado atual dos assuntos humanos”, ou seja, ainda se vivencia a rotina da época, tem-se a memória recente dos fatos e uma geração que conviveu com o biografado, de forma que confirmar sua construção literária do reformador, de forma que ele seja reconhecido pelos seus contemporâneos e o biógrafo tenha seu relato validado, quando alguém insinuar ocorrência de um enredo fictício sobre o reformador. De certo, Beza reunia as condições ideais para se colocar como biógrafo de Calvino. Já experiente escritor: na dramaturgia, com a conhecida peça de teatro “Abraão sacrificando” (1552); na filologia, com a edição textuais crítica do Novo Testamento; na historiografia, com a História Eclesiástica das Igrejas Reformadas no Reino da França (1521-1563); e outros escritos de cunho jurídicos e teológicos. Também, no uso da pena, estaria a pessoa, na qual sua memória era a fonte documental, porque vivenciou como testemunha ocular ou como participante dos fatos narrados.
Por sua vez, os inimigos do reformador, fizeram-se mais profícuo em o biografar após sua morte. Diante da impossibilidade de estalar os dedos e fazer desaparecer aquele que era desejado não ter nascido, era possível com os mesmos dedos fazer literariamente a pena realizar esse feito. Desse modo, em agressão à boa consciência e ao aviltamento da verdade, nesse imenso esforço biográfico à pessoa do antigo pastor de Genebra, era inaugurada um novo gênero literário: a biografia apócrifa. Atente-se ao propósito difamatório da biografia apócrifa. Na impossibilidade de apagar a pessoa da história, a substituiria por outra ela, mas criada pela sua biografia apócrifa e o aposto da real. E o que se pretendia com a invenção de outro Calvino? O público leitor das biografias apócrifas, escritas pelos inimigos do reformador, era apenas o fiel da Igreja Papal, de forma a conduzi-los a conhecer apenas o Calvino do mal, para não ser atraído pela sua pessoa à doutrina dele.
Sendo o biografado declarado herege pela Igreja Papal, toda mentira seria verdade a seu respeito, que deveria ser creditada e divulgada com afinco pelos fiéis de boa vontade, ou seja, pessoas simples do povo, que jamais seriam capazes de tal maldade sem a indução à superstição por crédito ao ensino em nome da Igreja romana. Um exemplo dessa tática de difamação literária, encontrada em muitas dessas biografias, trata-se do estado de saúde do reformador no leito de morte. No último dia de vida, Calvino estava muito debilitado, devido ao longo acometimento por várias doenças, a maioria em estado crônico avançado. Com forte crise de asma, que provocava tosse persistente, ocorria intensa dificuldade de respirar, deixando sem forças e forte palidez. Ele foi assistido o tempo todo por médico, amigos e familiares. A causa da morte já era esperada, dada ao agravamento de seu quadro de saúde nos últimos anos e, irremediavelmente, nas últimas semanas.
Ao biografá-lo, os inimigos de João Calvino, no entanto, não o pouparam com insinuação, maculação e difamação. Para impor medo nas pessoas e as impedir de aderirem à fé protestante, foi ensinado ao povo que quem abandonava a igreja católica e aderia a fé protestante morria sob dolorosa penúria e extrema angústia, de forma a falecer em praguejamento e gritos alarmantes horríveis, devido a sua lenta entrada em danação (perdição). Era ensinado, também, aos fiéis pelo clero católico, que os pastores protestantes escolheram o pastorado protestante para viverem em luxúria e imoralidade incontida, motivo de não assumirem a castidade. No uso dessas crenças fabricadas maldosamente, mas com enorme popularidade, não deixaram passar a oportunidade de difamar o reformador com insinuações dos pretensos motivos de seu leito de morte: devassidão na luxúria, imoralidade desenfreada e danação do inferno. Então, escreveram, continuaram a repetir nos escritos posteriores e a conduzirem os outros a censurarem, sempre que o nome João Calvino fosse citado, que ele morreu exaurido de suas forças de tanta prática de luxúria e de se entregar desenfreadamente à imoralidade, com últimos suspiros sob praguejamento e renúncia dos erros em seus escritos heréticos e a implorar aos seus que não os seguissem em seus ensinos. É possível afirmar que tudo isso foi produto da pena do primeiro biografo por inimizade a João Calvino: o médico Jérôme-Hermès Bolsec, em sua obra Histoire de la vie, moeurs, actes, doutrine, constance et mort de Iean Calvin, ladis ministre de Geneue [História da vida, moral, obras, doutrina, constância e morte de João Calvino], publicada em 1577, apenas treze anos após a morte do biografado e dois anos da primeira por Beza. Seu livro é um assassinato do caráter de Calvino, em vez de uma biografia. Alister McGrath relata: "[Calvin], segundo Bolsec, era irremediavelmente tedioso e malicioso, sanguinário e frustrado. Ele tratou suas próprias palavras como se elas eram a palavra de Deus, e permitiu-se ser adorado por seus seguidores. Em Além de se envolver frequentemente em atividades homossexuais, ele tinha um hábito indiscriminado de se entregar sexualmente a qualquer mulher presente a uma distância a pé."
Ao informar sobre o encerramento do conteúdo do livro ao leitor, Bolsec justifica a sua motivação à escrita dele, pois:
...por meio do qual desejo dar a conhecer a vida, a moral, a astúcia diabólica de Calvino e a sua morte corporal, da qual ele partiu em meio a blasfêmias, murmurações, rancores, maldições e extremo desespero.
Se sobre um herege relatou, então, dele confessou! E se dele confessou, logo, o sentenciou! Essa era as duas máximas observadas de toda crença contra a quem era declarado herege pela igreja. Contra ele, toda mentira era verdade a seu respeito. Por atos, palavras ou pensamentos ocorreu da parte dele! Se o herege se apresentava entre seus conhecidos como pessoa do bem, sincera e sem dar motivo à censura, que não se enganassem, pois era apenas um lobo vestido de ovelha para enganar as verdadeiras ovelhas de Deus. Mas como um médico da cidade de Lyon deu-se a escrever uma obra, na qual a pena não secaria a tinta do tinteiro à verdade, mas à maldade da difamação alheia. Se Calvino era herege, Bolsec acreditava fazer um bem à Igreja e a realizar uma boa obra, destruindo a imagem e a obra do reformador através de sua fábrica de difamação, para que o leitor jamais, informado da danação do seu biografado, jamais pensasse nem vagamente, por mais terrível que fosse a dúvida contra a Igreja Papal, tornasse um calvinista: seguidor de Calvino. Ele estava mentindo, mas o leitor não suspeitaria, pois a assinatura de sua credibilidade era o que importava para ele! Assim, dois Calvinos passaram a coexistir: o Calvino histórico que concebeu ao mundo moderno enormes contribuições e que elaborou um dos sistemas teológicos do Cristianismo mais coerentes com o legado da ortodoxia e o Calvino do universo religioso interno do catolicismo, cujo senso comum dos fiéis o mentalizava como a própria encarnação do mal.
♥┌ Conclusão
Apesar de poder ser contado como uma das pessoas mais caluniadas e que mais desejaram apagar ou borrar seu nome da história, Calvino viveu sua época e sobreviveu memorável as eras depois dele. Se ele pudesse dizer algo aos seus difamadores, que inutilmente tentavam apagar sua vida da memória da história ou o substituir pelo arranjo das biografias apócrifas, certamente, diria: — É inevitável! Ninguém pode com a verdade, senão pela verdade!
O Calvino improvável ou evitável deles! Sem prova, é preciso fazer a pessoa muito crédula. Feita, antes, a caveira de alguém, foge-se dela depois! Os primeiros missionários protestantes no Brasil, no século XIX, muitas vezes tiveram que tirar o sapato para mostrarem os pés. Como eram chamados de bodes (não eram ovelhas de Deus), acreditavam que tinham os pés fendidos, semelhantes ao animal. Fazia-se, então, necessário provar o contrário!
O século XX pode ser considerado o século de João Calvino e ele do século XXI. E como num estalar de dedos, o reformador se tornou inevitável ao desaparecimento de seu apócrifo. Aquele que quase não saiu de Genebra, ainda em vida, percorreu o mundo através de suas cartas aos amigos, conhecidos e lideranças dos reinos. Suas ideias cruzaram o Oceano e fundou o Novo Mundo. Ao procurarem evitar afeição a ele, já era o inevitável formador das singularidades da modernidade e de seu desenvolvimento e do Cristianismo Post tenebras lux - Da luz, após das trevas.
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